Tesouros inexplorados da construção de Brasília permanecem guardados em um apartamento da Asa Sul e em uma casa portuguesa. São 12 rolos de filme em 16mm, cinco dezenas de fotografias em preto e branco e centenas de fotogramas não copiados, todos paisagens e personagens da capital em formação captadas pelo engenheiro luso Fernando da Glória Rosendo. Ele desembarcou no Planalto Central pela primeira vez em 1956, com a responsabilidade de concretizar uma das obras-primas de Oscar Niemeyer, o Palácio da Alvorada. Dedicou os dois anos seguintes ao projeto do arquiteto e à documentação da vida dos candangos, da visita de autoridades e do surgimento da cidade traçada por Lucio Costa.
Metade desse material está na residência do engenheiro, hoje com 83 anos e morador de Portimão, sua terra natal, localizada na região do Algarve, ao sul de Portugal. Preocupado com a preservação da memória de sua família, Fernando entregou a outra metade dos filmes e das fotografias à única filha residente no Distrito Federal, em 2005. Nascida no mesmo ano da inauguração de Brasília, a professora da rede púbica Ana Maria Rosendo mora em um dos prédios da 303 Norte. Há seis anos, luta para ao menos assistir aos filmes produzidos pelo pai e muito bem conservados nas seis latas devidamente identificadas. ;Quando ganhei o material, meu sonho era alguém fazer um documentário;, conta Ana.
Desconhecendo as pessoas que fazem cinema em Brasília e sem acesso a um projetor de filmes do formato 16mm, a professora de educação artística viu o sonho se transformar em frustração. ;No começo, estava empolgada. Mas, após ouvir de algumas pessoas que ;esses filmes velhos não têm valor;, desanimei;, ressalta, sem esconder a mágoa. Mas aqueles filmes antigos guardam memoráveis cenas da construção da primeira cidade moderna tombada pela Unesco. ;Por ser responsável pela obra do Alvorada, tinha a oportunidade de presenciar todas as visitas do Juscelino (Kubitschek) e de outras personalidades ao palácio em construção. Registrei quase todas;, contou ao Correio, por telefone, Fernando Rosendo.
Além de fotografar e filmar as inspeções e reuniões das autoridades, o engenheiro registrava as visitas ilustres em livros. ;Todos que passaram pelo Alvorada naquela época, como Fidel Castro (líder da revolução cubana) e o general Eisenhower (comandante supremo das forças aliadas na Segunda Guerra Mundial) assinaram o Livro de Ouro e um outro, meu, particular. O Livro de Ouro, entreguei a JK e hoje está no memorial dele, em Brasília. O meu, infelizmente, perdi;, conta Fernando, bem-humorado. Mas o engenheiro não se limitava a filmar e clicar os visitantes ilustres. Adorava apontar aos candangos as lentes da câmera fotográfica, da suíça Carl Zeiss, e da filmadora Super 8 da Nikon.
Improviso
Dos trabalhadores braçais, Fernando guarda as mais fortes lembranças do período da construção de Brasília. ;Adorava passear pela Cidade Livre e ver aquela gente, os homens com facões na cintura, dizendo que estavam prontos para caçar onça. Um mito;, comenta. Para entreter os peões da obra do Alvorada, ele improvisava um cinema no acampamento onde os trabalhadores dormiam, descansavam e comiam. ;Exibia todo mês um filme enviado do Rio de Janeiro pela Rabello (construtora responsável pela empreitada).; Na primeira sessão, Fernando ficou espantado com a reação do público. ;Os peões levantaram e começaram a passar a mão no lençol branco que estiquei para usar como tela. Queriam ver se as imagens reproduzidas tinham vida;, lembra.
Já um nativo do Centro-Oeste deu a Fernando a maior prova da boa vontade e honestidade de um brasileiro. ;Havia saído para caçar veados e outros bichos com amigos. No meio do cerrado, encontramos um velhote, um nativo. Estava com o filho, uma bolsa de feijão e outra de laranja. Para ajudá-lo, decidi comprar tudo. O homem me perguntou onde eu morava e prometeu deixar tudo lá no Alvorada. Entreguei o dinheiro a ele, duvidando da sua palavra. Mas, ao chegar no palácio, por volta de umas 10 da noite, lá estava o homem. Não quis deixar os pacotes com ninguém. Fazia questão de me entregá-los em mão. Isso me marcou muito.;
Personagens anônimos como o sertanejo sempre atraíam os olhares de Fernando. ;Eu não era um fotógrafo ou cinegrafista profissional. Eu era um curioso. E aquela gente, com um modo de vida diferente do meu, sempre chamava a minha atenção. Por isso os filmava e fotografava;, explica. O português permaneceu no Alvorada até 1961. Apesar de inaugurado oficialmente em 30 de junho de 1958, o palácio ainda tinha muitas obras a serem realizadas. Após entregar a edificação totalmente concluída, Fernando montou uma pequena construtora, que levava o seu sobrenome. Por meio dela, tocou as obras do terminal provisório de passageiros do aeroporto e de cinco hotéis usados apenas nos primeiros anos da capital. Todas à base de madeira.
Peregrinação
Sem outras empreitadas, Fernando deixou Brasília em 1962. Separado da primeira mulher, uma brasileira com quem tivera dois filhos ; o primogênito Pedro (1958-1979) e Ana Maria, ambos nascidos no Rio de Janeiro por falta de hospital seguro na Brasília em construção ;, o engenheiro voltou à capital fluminense. O Rio foi sua primeira morada no Brasil, onde chegara 10 anos antes, após concluir o curso de engenharia civil em Lisboa. Mas ficou pouco tempo na antiga capital brasileira. Ainda em 1962, mudou-se para Buenos Aires, na Argentina, onde casou-se pela segunda vez. União que lhe renderia outros dois filhos, um engenheiro têxtil e uma arquiteta, nascidos na Argentina e hoje moradores de Portugal. O inquieto Fernando, porém, mudou de país novamente dois anos após se casar outra vez.
Seu próximo destino foi Moçambique, uma das colônias portuguesas na África. Ele chegou àquele país em 1964, a convite do irmão, dono de um açougue, e de bem-sucedidos colegas engenheiros. Mas, em 1975, despachou às pressas para a Argentina a mulher grávida do quarto filho. Ficou em Moçambique para tentar salvar algum dos bens adquiridos nos 11 anos de trabalho no país. À época, estourou a Guerra de Independência, que culminou na libertação da antiga colônia portuguesa, em 25 de junho de 1975. Em uma luta de guerrilha, iniciada um ano antes, os negros africanos expulsaram os brancos dominadores. Capturado por rebeldes, Fernando quase morreu. ;Só escapei porque, ao abrirem a minha maleta, encontraram uma bandeirinha do movimento libertador, sem ver o dinheiro que eu escondia. Acharam que eu era simpatizante da causa, mas a bandeira havia sido colocada ali por meu filho pequeno, sem eu saber;, recorda.
Na mesma maleta estavam os filmes e as fotos feitas em Brasília. Com o dinheiro, os únicos bens de Fernando salvos na fuga de Moçambique. Material que ainda acompanhou o dono no retorno ao Rio de Janeiro ; onde se estabeleceu após conseguir trabalho no dia seguinte ao desembarcar no voo vindo da África ; e na segunda estada em Brasília ; em 1978, para reforma de um hospital privado. Antes de voltar em definitivo a Portugal, Fernando morou no Rio até 1984. Desde então, curte a vida pacata na costeira Portimão, com pouco mais de 60 mil habitantes e muita sardinha. Já os filmes em poder da filha Ana Maria, após a saga de mais de 50 anos, aguardam um projetor que lhes dê vida.
Sem condições
Cineastas ouvidos pelo Correio falaram da dificuldade em exibir filmes de 16mm. No DF, não há projetores públicos. E, como o material de Rosendo tem mais de 50 anos, aconselham a família dele a procurar técnicos para manusear e revisar os filmes, antes de uma exibição. Sediada em São Paulo, a Cinemateca Brasileira, órgão do Ministério da Cultura, tem projetores, mas não exibe filmes de terceiros por causa do risco de danificar o material. No entanto, oferece o serviço gratuito de preservação em ambientes adequados. Já a digitalização e a restauração são cobradas de acordo com a dificuldade e a quantidade do serviço.