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Criado em um abrigo, brasiliense descobre que tem um irmão na Itália

Tudo que André Luiz dos Santos, 29 anos, tem na vida cabe em um pequeno cômodo alugado, no Recanto das Emas. Ali estão a cama de solteiro, televisão, cinco panelas, fogão, computador, guarda-roupas e uma geladeira, além das compras do mês. A solidão está impregnada no ar. A principal companhia do jovem é o notebook compacto, branco, no qual ele observa fotos, enquanto pensa na família que não teve.

A mãe de André Luiz perdeu a guarda do filho, em 1982, quando ele tinha menos de um ano de idade. A criança cresceu no abrigo Nosso Lar, no Núcleo Bandeirante. Até alguns anos atrás, André não se lembrava, mas não chegou sozinho à casa para crianças em situação de risco. A seu lado estava o irmão Wellington Francisco, dois anos mais velho.

Os dois foram tomados da mãe por uma assistente social, pois ela não tinha condições financeiras ou psicológicas de criá-los. Quando chegou ao abrigo, André, que tinha um ano, pesava 5kg e apresentava sinais de desnutrição. Hoje, é a foto de Wellington, o irmão desconhecido, que ele observa na tela do computador. A história é complicada. Wellington foi adotado, pouco depois de completar 3 anos, por uma família de italianos. André não teve a mesma sorte e ficou no abrigo.

Por conta da pouca idade, André cresceu sem se lembrar do irmão. Carregava a certeza de que era sozinho no mundo. Apesar de ganhar carinho e atenção no abrigo, faltava a intimidade do colo de mãe. Nos aniversários, as comemorações eram coletivas. A cada três meses, reuniam-se os aniversariantes e cantava-se parabéns, com direito a presente. A impessoalidade dessas ocasiões, porém, sempre incomodou o menino.

O pai, ele nunca conheceu. Nem pensava no assunto. Ainda hoje, fala pouco sobre o homem que ajudou a gerá-lo. A mãe apareceu algumas vezes no abrigo. Quando André tinha 8 anos, ela tentou levá-lo de volta para casa. A criança agarrou-se ao portão do Nosso Lar. Recusou-se a deixar o local que chamava de casa ao lado de uma desconhecida. Teve a vontade respeitada.

Descoberta
André só deixou o abrigo quando completou a maioridade. Anos depois, a mãe, em uma das visitas esporádicas, comentou sobre o irmão de André. ;Na hora, eu fiquei atordoado. Não lembrava da existência desse irmão. Separaram a gente muito pequeno. Hoje, sou totalmente contra separar irmãos que vão para abrigos. É uma crueldade.; Durante toda a vida, o rapaz se sentia mal quando alguém falava sobre a própria família. ;Todo mundo tinha irmão, pai, mãe; E eu? O que eu tinha? Eu só me perguntava: ;Cadê a minha família, meu Deus?;;, lembrou, sem conseguir conter as lágrimas.

Saber que tinha um irmão foi como se encontrar, caber um pouco mais no mundo. André, que à época trabalhava como auxiliar administrativo no Nosso Lar, desarquivou os documentos dele e de Wellington. Conseguiu o número do processo sobre a ida ao abrigo, que era o mesmo para os dois meninos. André começou uma peregrinação: ;Eu ficava imaginando que ele podia ser meu vizinho, alguém muito próximo. Não conseguia parar de especular;.

O primeiro local visitado foi a Vara da Infância. Lá ele teve acesso aos documentos da adoção do irmão. Soube que Wellington havia sido levado para a Itália por um casal formado por um operário e uma comerciante. Os dados da família estrangeira estavam ali. André, mais do que rápido, anotou o endereço e o telefone ; fornecidos à Justiça brasileira há quase 30 anos ; em um pedaço de papel. Saiu sem saber o que faria com as informações. Não tinha, como ainda não tem o dinheiro necessário para chegar à Itália. O lugar mais distante de Brasília que já visitou foi Porto Seguro (BA).

André teve a ideia de mandar um e-mail para a embaixada do Brasil na Itália. Explicou toda a situação e enviou os nomes dos pais adotivos do irmão ; que passou a se chamar Wellington Francesco Lorenzeti ;, endereço, na província de Perugia, e telefone. Por sorte, os dados para localização permaneceram os mesmos.

;Eu não acreditei quando vi a resposta da embaixada. Eles localizaram meu irmão. Me passaram o e-mail dele. Mandei uma mensagem emocionada, com ajuda do tradutor que tem no Google;, relatou André. Por conta da ferramenta de tradução, o texto saiu um pouco confuso. Mesmo assim, Wellington, após semanas, respondeu. ;Ele disse que ficou surpreso com tudo isso. Já sabia que era adotado, mas não lembrava também que tinha um irmão.;

Em seguida, André localizou o irmão no Facebook, página da internet usada para compartilhar informações pessoais ou profissionais. Encontrou fotos de Wellington ao lado da mulher e do filho. ;Eu tenho até um sobrinho;, comemorou. André salvou as fotos no computador, para não correr o risco de perder o único contato que teve de parte de sua família. Ele criou também um blog para contar essa história e mobilizar pessoas dispostas a ajudá-lo, o www.andreeseussonhos.blogspot.com.

Wellington passou um número de celular para o irmão. Mas falta coragem para ligar. ;Eu não falo italiano, vou dizer o quê?;, pergunta-se. André enviou uma carta, com a ajuda de uma tradutora do Banco do Brasil, para o irmão. A resposta ainda não veio. Enquanto isso, André descobre um pouco mais sobre Wellington. ;Ele parece um pouco comigo. É batalhador, como eu. É ourives. Não desiste das coisas. Tem uma personalidade forte. Mesmo sem conhecê-lo, me identifico com ele.;

Depois de sair do abrigo, André trabalhou em vários locais. Há dois meses, deixou o emprego no Nosso Lar. ;Eu cresci lá dentro. Apesar de ser muito grato, precisava tentar outras coisas, para crescer e me descobrir fora de lá.; Agora, distribui currículos e está em busca de emprego. Há um ano, ele economiza cada centavo para viajar à Itália e conhecer o irmão.

Família
A mãe biológica dos dois rapazes, Maria Francisca, hoje aos 54 anos, vive em Jaciara (GO). Nunca comentou sobre o pai dos garotos. Recentemente, André descobriu que tem outros quatro irmãos. Três, ele já conheceu. Um deles vive em Angical, na Bahia, chama-se Uanderson e tem 20 e poucos anos. ;Ninguém consegue encontrá-lo. Meu sonho era reunir todo mundo, chegar à casa da minha mãe, de surpresa, com meu irmão Wellington.;

André garante que não guarda mágoas da mãe. Nos últimos três anos, passou o Natal ao lado dela. Mas sente o pesar de ter crescido sem família. Ainda assim, não se arrepende de não ter ido embora com ela. ;Eu não teria estudado até o segundo grau, como estudei, graças ao Nosso Lar. Estaria como meus irmãos, trabalhando em carvoaria;, contou, com a voz embargada.


O rapaz não consegue deixar de imaginar como teria sido a vida ao lado do irmão e da nova família, na Itália. Certamente, a solidão o consumiria menos. Enquanto não consegue ir ao outro país, André estuda italiano sozinho. Já escolheu a sua palavra preferida no idioma: fratello, que significa irmão. Pretende pronunciá-la acompanhada de um abraço demorado, quando tiver o esperado encontro com a própria história.