A mensagem na parede do Centro de Orientação Socioeducativa (Cose) da Guariroba, em Ceilândia, é quase um pedido de socorro. No muro coberto pelo colorido do grafite, está escrito em letras pretas desenhadas com spray: ;O mundo pensa que o jovem é trouxa;. Mais de mil meninos e meninas, homens e mulheres, dos 7 aos 26 anos, compartilham esse pensamento e frequentam o centro de atividades.
Lá eles recebem lições em um projeto ; o Tudo que fizerdes ao adolescente ; que tenta alterar a percepção da realidade como um caminho restrito e oferece aulas gratuitas de circo, música, dança, teatro e literatura para mais de 1,8 mil jovens de todo o Distrito Federal. As atividades, além da Guariroba, são realizadas em 15 unidades outras unidades do Cose. Envolvem crianças e adolescentes expostos aos riscos da pobreza, da falta de orientação e, muitas vezes, sem uma família estruturada.
No ano passado, a ideia ganhou o apoio financeiro da Secretaria de Desenvolvimento Social e Transferência de Renda (Sedest).
O objetivo é mostrar aos assistidos os múltiplos caminhos para encontrar a realização pessoal e profissional. A tentativa começa a render bons frutos. Duas bandas formaram-se depois das oficinas e já gravaram CD e DVD. Os grupos musicais Nova Mania (pagode) e Rodôkebra (axé) apresentaram-se, recentemente, em grandes eventos, como a comemoração de fim de ano na Esplanada dos Ministérios e a Festa do Peão de Barretos.
Boa parte dos integrantes cumpriu medida socioeducativa em instituições como o Centro de Atendimento Juvenil Especializado (Caje) e o Centro de Internação de Adolescentes Granja das Oliveiras (Ciago). Depois de conhecer a música, eles deixaram o crime para trás. E começam a construir uma nova trajetória de trabalho e sucesso.
Mudança
Há poucos meses, Diego Lima, vocalista da Nova Mania, completou 18 anos. Ele nunca esteve no Caje ou no Ciago, mas, como o próprio rapaz admite, passou bem perto. Desde pequeno, Diego, que vive em Santa Maria, apreciava escrever música e poesia. ;Ninguém nunca me ensinou, mas eu gostava;, lembrou.
Diego sonhou muito. Até que deixou de acreditar. ;Eu escrevia, escrevia e não via resultado nenhum. Não cabia em nenhum lugar. Já estava desvalorizado no mundo. Quando a gente sonha demais e nada acontece, a gente começa a se desiludir.; O menino envolveu-se em problemas. Foi encaminhado então a um Cose, na cidade em que vive. Lá, em uma aula de literatura, conheceu Chico de Aquino, o coordenador do Tudo que fizerdes ao adolescente. E recebeu dele o convite para aprender música.
A aventura rendeu mais de 200 letras compostas por Diego, com direito a melodia para acompanhar. As canções falam do sentimento que atormenta e alegra, ao mesmo tempo, todos os seres humanos: o amor. Desde 2009, o rapaz canta no Nova Mania. Johnatan Silva Pereira, 22 anos, também faz parte do grupo. Ele passou por uma internação, durante um ano e quatromeses, no Ciago. Lá conheceu o projeto social. ;Eu nunca tinha imaginado que podia ser músico. Isso mudou minha forma de pensar. Quem tem oportunidade só vai para o mal se quiser;, ensina.
É estimulante ver o prazer que os adolescentes experimentam com a música. Cada batucada é um passo à frente. ;Eu me sinto capaz;, resume Diego. Assim como ele, os colegas que estão nas bandas destacam-se dentro da comunidade como exemplos do bem. Muitos ainda convivem com pais presidiários e irmãos perdidos no mundo das drogas. Mas não pensam em desistir. Já ganharam até um fã clube, formado pelas meninas da cidade. Com o lançamento do CD e do DVD, algumas emissoras de rádio também começam a se interessar pelas músicas dos dois grupos.
Estímulo
O projeto social no qual os meninos se inscreveram, como forma de incentivar a carreira, doou dois carros e duas bolsas de estudo em curso superior para serem sorteados nas rádios, como forma de atrair novos fãs para a Nova Mania e para a Rodôkebra. Chico de Aquino entende a importância dessa valorização. Ele esteve preso na Papuda, durante cinco anos, por estelionato. Na cadeia, descobriu o Tudo que fizerdes ao adolescente, fundado em 1995 pelo então secretário de segurança pública do DF, Roberto Aguiar.
Chico conheceu o teatro. Encantou-se. Experimentou uma empolgação que nunca havia sentido por nada. ;A arte estende um olhar fraterno, com os dois olhos abertos para o ser humano. O teatro tem esse poder, a música também;, definiu. Chico vivia no Piauí, sua terra natal, e vinha a Brasília ;só para aprontar;, como ele mesmo diz. Não passava sequer 48 horas seguidas na cidade. ;Até que um dia eu tive a felicidade de ser pego pela polícia. Eu não sabia, mas estavam me fazendo um enorme bem.;
Ao sair da Papuda, Chico trabalhou durante três meses como jardineiro. Sentiu falta da arte. Pediu para atuar no projeto. Hoje, é o diretor artístico da entidade. Quando olha para os meninos e meninos que ajuda a enxergar mais longe, ele se vê. Outros se espelham nele, como o professor de dança do projeto, Robert Júnior, 24 anos, morador de Ceilândia.
O rapaz começou como aluno e hoje ensina no projeto social e em academias. Vive da própria arte. ;Dos meus colegas daquela época, dois morreram, outros estão presos. Me salvei quando o Chico me estendeu a mão. Eu vivia numa família com problemas. O Chico chegou a tirar uma faca da minha mão, no momento de uma briga. Nunca vou esquecer. Depois disso, minha família é outra;, relatou Robert.
As atividades no Tudo que fizerdes ao adolescente vão além. Ali, também há planos preventivos para evitar que crianças que vivem em comunidades carentes se envolvam com o crime. A pequena Yasmin Ariadny Lopes, 11 anos, moradora de Ceilândia, é uma das mais novas integrantes do projeto. Há poucos dias, começou a aprender teatro e circo, no contraturno da escola comum. Seus pais mantêm dois empregos cada um para oferecer uma vida digna à criança. Podem trabalhar sossegados, enquanto ela faz bom proveito do tempo livre, sem pagar por isso. ;Eu fico ansiosa para vir pra cá. Um dia, eu posso ser uma atriz, quem sabe?;, sonha. Aos poucos, a iniciativa semeia esperança e rega expectativas.