Jornal Correio Braziliense

Cidades

Irmãs que viram Brasília nascer lembram dos primeiros tempos da capital

Contatadas por uma sobrinha que leu reportagem do Correio sobre o livro Arquivo Brasília, duas irmãs que se reconheceram em uma das muitas imagens anônimas da publicação

A poeira das ruas sem asfalto e as construções por todos os lados nunca tiraram o glamour das festas, desfiles e bailes realizados todos os fins de semana na recém-inaugurada Brasília. Nos primeiros anos da capital, os funcionários públicos transferidos para a cidade faziam questão de se divertir e de manter vivas as tradições de suas regiões. Serestas, rodas de viola ou de samba, encontros sociais, chás de mulheres, festas dançantes: a alegria era a regra em todos os eventos.

A juventude também tinha espaço nos salões. Assim, no ano seguinte à inauguração, o Brasília Palace Hotel organizou o primeiro baile de debutantes da capital. O anúncio causou frisson entre as mocinhas, que começaram a providenciar arranjos de cabelo, joias e, principalmente, vestidos de tirar o fôlego. No fim de 1961, a festa lotou o salão principal do edifício e se tornou um dos maiores eventos sociais da nova capital brasileira.

Entre as adolescentes vestidas de branco, estavam as irmãs Sônia e Sheyla Lourenço, hoje com, respectivamente, 65 e 64 anos. Elas se reconheceram nas fotos publicadas pelo Correio Braziliense na edição do último domingo. A reportagem mostrou imagens de anônimos que ajudaram a construir a história da cidade, todas elas reunidas no livro Arquivo Brasília, de Lina Kim e Michael Wesely. Uma sobrinha viu Sônia e Sheyla no jornal e se apressou em avisá-las sobre a publicação.

Um exemplar da reportagem vai juntar-se agora às dezenas de registros que as irmãs guardam da época. As cariocas chegaram a Brasília em 10 de junho de 1960. Só não vieram a tempo de ver a festa de inauguração porque a mudança atrasou. Filhas de funcionários públicos, elas resistiram à mudança, assim como os pais, acostumados à vida animada de Copacabana. Mas logo se renderam ao estilo de vida brasiliense. ;Apesar da poeira, a vida aqui era muito boa. Todo mundo se conhecia e havia bailes em praticamente todos os fins de semana. Quando não tinha nada programado, a festa era na nossa casa, que ficava na 707 Sul;, relembra Lourdes Lourenço, 87 anos, mãe de Sônia e Sheyla. ;Chamavam a nossa casa de Pensão LL, por causa das iniciais do meu nome. Todo mundo ia para lá.;

Preparativos
Com esse espírito festeiro e boêmio, as primogênitas da família Lourenço não poderiam ficar de fora do baile de debutantes do Brasília Palace. Assim que foram convidadas para o evento, as jovens começaram os preparativos. ;Muitas meninas foram para o Rio de Janeiro ou para São Paulo procurar as melhores roupas. A organizadora do baile, que se chamava Clara Melro, inovou ao propor vestidos mais curtos. De fato, foi uma ousadia para a época;, relembra a artista plástica Sheyla. Os modelos usados pelas irmãs Lourenço foram confeccionados em Brasília, mas não deixaram nada a desejar aos outros vestidos comprados nas melhores butiques das grandes de cidades.

O primeiro baile de debutantes da capital reuniu cerca de 50 moças. Nem todas tinham 15 anos. Sheyla, por exemplo, havia completado 14. A irmã Sônia já tinha 16. Havia até algumas com mais de 20 anos. Isso tudo por conta da imensa procura: todas as garotas da época sonhavam com uma vaga na luxuosa festa do Brasília Palace.

As meninas desfilavam no salão principal do prédio, decorado por um belíssimo painel de Athos Bulcão, e depois desciam as escadas para se exibir aos convidados, como parentes e autoridades. ;Me lembro que a barra do meu vestido se prendeu à roupa de uma outra menina, foi o maior susto. Um fotógrafo flagrou e colocou o detalhe em uma revista da época que noticiou a festa, não me lembro se foi a revista Cruzeiro ou a Manchete;, relembra, em gargalhadas, Sheyla Lourenço.

Paquera
A artista plástica já estava acostumada com a badalação. Era sempre escolhida para desfilar modelos de lojas recém-chegadas a Brasília. Foi representante da Gulistan, uma das primeiras butiques da cidade, e participou até de desfiles de marcas renomadas, como a joalheria H. Stern. Os eventos mais badalados eram realizados em clubes como o do Congresso e o da Unidade de Vizinhança. O frisson do baile de debutantes não era, portanto, uma grande novidade.

Mas a festa acabou tomando grandes dimensões. Uma gigantesca orquestra animou os convidados, que se sacudiram ao som de Ray Connif e Johny Metz. Sheyla Lourenço lembra-se de detalhes daquela noite. ;O sofá onde as debutantes aparecem sentadas naquela foto que o Correio publicou era vermelho. Me lembro perfeitamente também que eu usava um vestido cheio de babadinhos;, comenta a artista plástica. Os tempos eram outros, mas a paquera já rolava solta. O rapaz mais bonito e disputado do baile de debutantes se chamava ;Fernandão;. Todas as moças eram só olhares para o jovem alto, que aparece em uma das fotos do arquivo pessoal da família Lourenço. ;Menos de um ano após o baile, eu já estava casada. Tinha apenas 17 anos;, relembra Sônia, a mais velha, hoje viúva.

Sheyla ainda sonha reunir parte do grupo das debutantes de 1961 em uma nova festa. O local não poderia ser outro: o Brasília Palace. ;É uma vontade que eu tenho de relembrar aqueles bons tempos. Não tenho o contato da maioria das participantes, mas acho que seria possível fazer um novo baile, no mesmo lugar, 50 anos depois. Certamente, seria histórico;, conclui.


PARA SABER MAIS
Brasília Palace Hotel

Primeiro hotel construído na cidade e aberto em 1957, antes mesmo da inauguração da capital, o Brasília Palace era o ponto de encontro da sociedade na década de 1960. Projetado por Oscar Niemeyer, o edifício à beira do Lago Paranoá foi erguido para receber as comitivas que vinham conhecer a construção da nova capital. O luxuoso salão tornou-se palco de festas, jantares e encontros que contavam frequentemente com a presença do presidente Juscelino Kubitschek.

Em agosto de 1978, um incêndio destruiu a estrutura do edifício, que ficou abandonado por quase 30 anos. Durante o tempo em que permaneceu fechado, o Palace ganhou o apelido de ;predinho; e passou a ser utilizado para práticas de rapel. O hotel reabriu as portas em setembro de 2006, após passar por uma ampla reforma, que recuperou as características originais. Até o painel de Athos Bulcão que decorava o salão principal foi restaurado. O número de quartos subiu de 135 para 156 com a obra e, até hoje, o Brasília Palace recebe grandes festas.