Jornal Correio Braziliense

Cidades

Batalha por vagas em leitos de UTI nos hospitais do DF continua

Em meio à briga jurídica travada entre a Secretaria de Saúde do DF e a rede particular, pacientes seguem sofrendo as consequências da falta de leitos no sistema público. Nem mesmo as liminares têm garantido o atendimento

A três dias do fim do ano, parece cada vez mais distante o fim das desavenças entre os hospitais particulares e Secretaria de Saúde do Distrito Federal. Nem as decisões da Justiça têm conseguido blindar a população dos prejuízos causados pela queda de braço entre o poder público e o setor privado. Só na semana do Natal, o plantão da Defensoria Pública recebeu 17 famílias em busca de liminares judiciais para garantir a internação em leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Apenas duas delas não precisaram da ajuda dos tribunais porque conseguiram ter o parente atendido por meio da Central de Regulação de Leitos da Secretaria de Saúde.

O caso do pedreiro Valmir Martins Delgado, 32 anos, ilustra bem a situação. Há 20 dias, ele foi baleado três vezes em uma parada de ônibus em Luziânia (GO), município distante 66km de Brasília, após uma tentativa de assalto que terminou frustrada porque a vítima não tinha dinheiro. Dos cinco disparos, três atingiram o pulmão, o fígado, os rins e o pâncreas de Valmir. No Hospital de Base do DF, ela foi submetido a uma longa cirurgia. O pedreiro perdeu o rim esquerdo e várias partes dos órgãos atingidos. Saiu do centro cirúrgico ainda sob risco de morte. Os médicos recomendaram, com urgência, que ele fosse internado em uma UTI, mas ele ficou à espera de um leito na sala de recuperação. ;No próprio hospital, nos entregaram a documentação necessária e nos aconselharam a procurar a Defensoria Pública;, conta a tia do paciente, a funcionária pública Maire de Fátima, 44 anos.

No dia seguinte à cirurgia, a família de Valmir conseguiu uma liminar. Ainda assim, o paciente não foi transferido. ;A frustração é que, mesmo com a decisão judicial, nada aconteceu. No documento, o juiz estabelecia que o não cumprimento da determinação significaria uma multa de R$ 5 mil por dia para o Estado e nem assim as autoridades se intimidaram;, lamenta Maire. O sobrinho permaneceu internado em uma ala intermediária do Hospital de Base, mas a supervisão médica não foi suficiente para impedir que os pulmões se enchessem de pus e líquido. O agravamento do quadro clínico não deixou outra opção a não ser uma segunda intervenção.

Decisão ignorada
Maire, a mãe e a mulher do pedreiro buscaram a Defensoria Pública para recorrer à Justiça novamente. Segundo a tia do rapaz, a família viu entre 15 e 20 pessoas desesperadas pelos corredores em busca de um documento que salvaguardasse seus parentes. ;Saímos do fórum 1h da manhã;, relembra Maire. Mais uma vez, a medida foi conquistada e descumprida. Diante da ineficácia até mesmo das determinações dos magistrados, a família desistiu de buscar garantias por meio do Poder Judiciário. ;A sensação que tive foi de estar com as mãos e os pés quebrados, incapaz de fazer qualquer coisa. É muito sofrimento ver uma pessoa ter que passar por isso. Ao mesmo tempo, um empresário que está preso passa mal e em um minuto arranjam um leito para ele. E a vida de um trabalhador como o meu sobrinho? Não vale nada? Só consegue quem tem dinheiro?;, questiona Maire.

Segundo a Secretaria de Saúde, ontem, havia ;aproximadamente 30 pacientes aguardando um leito de UTI; na Central de Regulação, mas não havia ;nenhuma decisão judicial aguardando leito;. Por meio de assessoria, a secretaria reiterou que a determinação judicial não é garantia de internação e que às vezes ;o leito que o paciente precisa não é aquele que está disponível;.


Hospitais prometem recorrer
Situações como a vivida pela família do pedreiro Valmir Martins Delgado devem se repetir nos próximos dias, uma vez que a própria Secretaria de Saúde, que aluga leitos de UTI em 13 hospitais particulares, confirma que algumas unidades não estão cumprindo a decisão da 5; Vara de Fazenda Pública do Tribunal de Justiça do DF e Territórios, que, no último dia 17, determinou a continuidade da prestação de serviços. O juiz entendeu que não havia débitos referentes ao exercício de 2010, o que esvaziava o argumento do setor privado para quebra de contrato. Mas, o Hospital Santa Helena, que alega ter uma dívida acumulada em mais de R$ 11 milhões desde 2004, R$ 6.154,576 referentes somente a 2010, recorreu da determinação e conseguiu, em segunda instância, suspender a exigência no último dia 23.

De acordo com o assessor jurídico do HSH, Gustavo Penna Marinho, as instituições privadas não foram ouvidas para fundamentar a primeira decisão. ;Conseguimos provar que há débitos referentes a 2010. A secretária (Fabíola Nunes Aguiar) mostrou à Justiça ordens bancárias de pagamentos parciais;, sustentou. Para ele, a titular da pasta ;faltou com a verdade; e ;distorceu os fatos;.

A secretária foi procurada pela reportagem, mas não retornou as ligações. Por meio da assessoria, a Secretaria de Saúde informou que ;sobre a situação do Hospital Santa Helena, segundo a área jurídica da SES, ainda não fomos citados sobre a decisão, mas assim que isso ocorrer, a SES apresentará as notas que comprovam que o pagamento está em dia;.

O atendimento a pacientes do Sistema Único de Saúde, portanto, continua suspenso. ;Não é uma questão de vontade. É uma questão de impossibilidade de prestar o serviço. Não temos recursos para sustentar o caos da Secretaria de Saúde. Já tivemos de recorrer ao mercado financeiro para evitar o colapso do hospital;, argumenta Marinho. Ao dar a sentença, o desembargador de plantão e vice-presidente do TJDFT, Dácio Vieira, avaliou que, uma vez que há ;acentuada controvérsia acerca das reais circunstâncias que atualmente delineiam a contratação em exame;, não seria ;razoável, oportuna, uma intervenção severa do Judiciário que venha aprofundar ainda mais a situação;. O desembargador alertou para a ;lamentável situação da rede pública de saúde do Distrito Federal;, mas ressaltou que ;não há porque contaminar a rede hospitalar privada com igual desiderato, por evidente incúria administrativa;.

No mesmo dia 23, motivado por denúncias da secretaria de que os hospitais estariam desobedecendo a ordem judicial, outra decisão foi dada pelo juiz de plantão da primeira instância João Henrique Castro reforçando a necessidade do cumprimento da decisão 5; Vara da Fazenda. Ele determinou a intimação de todos os requeridos para que ;no prazo de 24 horas, manifestem-se acerca do alegado descumprimento de ordem judicial;.

Danielle Feitosa, superintendente do Sindicato Brasiliense de Hospitais (SBH) ; entidade que agrega pelo menos 10 dos 13 hospitais que mantêm contrato de aluguel de UTI ; afirmou que a tendência é que os demais hospitais também recorram da decisão da 5; Vara. Feitosa argumentou que o acordo firmado entre o governador, Rogério Rosso (PMDB), o Ministério Público, a equipe de transição e os hospitais em 18 de dezembro, que previa o pagamento de R$ 60 milhões para estancar a crise, tampouco foi cumprido. ;Foi um acordo oral. Depois, todo mundo viajou e ninguém deixou nenhum documento na secretaria mandando executá-lo.; No entanto, disse a superintendente, ;em apoio ao próximo governo, que nos passou uma impressão positiva;, garante Feitosa, ;o sindicato vai trabalhar nessa semana para tentar contornar a situação e manter os atendimentos até que o próximo secretário (Rafael Barbosa) assuma o controle da negociação;.


REPASSE FEDERAL
O Sistema Único de Saúde (SUS) foi criado em 1988 pela Constituição Federal. O objetivo principal é garantir acesso à saúde de forma integral, universal e gratuita para toda a população do país. O SUS abrange desde os simples atendimentos ambulatoriais até os procedimentos mais complexos, como os transplantes de órgãos.


Cronograma de uma crise

Abril
Primeiro alerta dos hospitais privados é dado logo após a posse de Rogério Rosso (PMDB). A dívida, até então, somava R$ 56 milhões. Rosso anunciou uma auditoria e prometeu uma solução para o impasse.

Outubro
Epidemia de superbactérias em UTIs públicas e privadas agrava a escassez de ofertas. Diversos leitos são isolados para barrar a disseminação.

Novembro

; A morte de 11 bebês na UTI neonatal do Hospital Regional da Asa Sul, referência obstetrícia da rede pública, acarreta no fechamento parcial da unidade, que passa a receber somente os pacientes mais graves.

; Rede particular ameaça novamente a suspender o atendimento nos 125 leitos conveniados por falta de pagamento. A dívida, segundo o Sindicato Brasiliense de Hospitais, ultrapassa os R$ 104 milhões, referentes ao período 2004-2010.

; No fim do mês, o Hospital das Clínicas, na 910 Sul, e o Alvorada, em Taguatinga, são os primeiros a interromper o atendimento a pacientes da rede pública. Ministério Público volta a entrar na mediação do caso.

Dezembro
; Rosso convoca a assessoria jurídica do GDF e a secretária de Saúde, Fabíola Nunes, para uma análise da situação. Governo reconhece dívidas de anos anteriores, mas garante que os contratos de 2010 estão em dia.

; Central de Regulação revela dificuldades de encontrar leitos na rede privada desde abril

; Até o dia 9, oito hospitais desativam os leitos alugados.

; Com a crescente judicialização da saúde, em especial das UTIs, TJDFT reúne autoridades para discutir soluções.

; Hospital Santa Lúcia derruba na Justiça memorando interno da Secretaria de Saúde que determina que os pagamentos passem a ser feitos pela tabela do Sistema Único de Saúde e não a tabela regionalizada, que tem valores bastante superiores.