Jornal Correio Braziliense

Cidades

Cerca de 1,2 mil pacientes estão na fila para operar cabeça ou pescoço

Parte tem câncer e corre risco de morrer antes de se submeter ao procedimento, pois há apenas oito médicos para toda a demanda

É cada vez maior a fila de pacientes que precisam passar por cirurgias de cabeça e de pescoço na rede pública de saúde do Distrito Federal. Atualmente, cerca de 1,2 mil pessoas estão cadastradas para realizar o procedimento, sendo que, pelo menos 200 têm câncer. O restante carrega tumores benignos. Para aqueles que se encaixam no primeiro grupo, ou seja, os casos mais graves, a agonia pode levar até cinco meses, tempo que pode ser fatal. Já a espera para os enquadrados no segundo perfil, em alguns casos chega a quatro anos. Os números são do Departamento de Cirurgia de Cabeça e Pescoço do Hospital de Base do DF (HBDF).

A especialidade é nova na medicina e trata principalmente dos tumores da região de face, fossas nasais, boca, faringe, laringe, tireoide, glândulas salivares, entre outros. Hoje, apenas o HBDF é habilitado para realizar operações dessa natureza no DF. Como se não bastasse a carência de novos espaços, a quantidade de médicos é insuficiente. ;Só existem oito cirurgiões de cabeça e de pescoço no DF. O ideal para atender toda a demanda reprimida seriam pelo menos 20, mas ainda estamos muito longe disso. A verdade é que o sistema de tratamento de câncer de Brasília é altamente defasado. Chega a ser um dos piores do Brasil;, criticou um servidor, que preferiu o anonimato.

As precárias condições de trabalho também são fatores determinantes para que os jovens especializados nessa área não se interessem em trabalhar para o governo. Um outro funcionário que presta serviço no HBDF contou que, não raras às vezes, os procedimentos cirúrgicos são feitos na base do improviso. Segundo ele, faltam desde serras a drenos de sucção. Para não adiar as cirurgias de quem esperou tanto tempo, os médicos custeiam alguns equipamentos do próprio bolso ou contam com doações. ;A secretaria (de Saúde) não fornece nem compra alguns insumos. Só temos drenos porque recebemos doações, mas serras nós temos que comprar;, contou.

Faltam anestesistas
Outro problema crônico da saúde que afeta a qualidade do serviço dos profissionais da área de pescoço e cabeça é a escassez de anestesistas. Segundo o chefe do departamento, Carlos Santa Ritta, muitos procedimentos são adiados porque não existem anestesistas disponíveis. ;A anestesia é um dos grandes gargalos da saúde pública no DF. Tem que dividir os poucos disponíveis para várias especialidades. Percebemos que a atual direção do hospital está batalhando para oferecer à população uma saúde de melhor qualidade, mas não é uma tarefa simples;, destacou o médico.

O diretor do HBDF, Luiz Carlos Schimin, reconhece o problema. De acordo com ele, a falta de anestesistas contribuiu bastante para que a fila de pacientes que aguardam a extração de canceres e tumores não parasse de crescer nos últimos meses. ;Até o ano passado, o paciente esperava no máximo 30 dias para ser operado, mas depois tivemos uma perda muito grande nos horários cirúrgicos por falta de anestesistas. Antes, o centro cirúrgico oferecia quase 400 horas por mês para serem distribuídas entre as especialidades, depois esse número caiu para 200 horas e as unidades tiveram redução no número de cirurgias quase proporcional a isso, justamente por falta de anestesistas;, contou Schimin.

Sem atendimento
Quem não teve forças para suportar a longa e dolorosa fila de cirurgia foi Luiz Alves Brasileiro, 62 anos, que desenvolveu um câncer de boca . O aposentado procurou atendimento no HBDF em janeiro, mas morreu no mês passado, sem conseguir realizar a cirurgia para extração do tumor. O sobrinho dele, o auxiliar de serviços gerais José de Deus Ferreira, 45 anos, não se conforma com a perda do tio. ;Ele sofreu muito, foi morrendo aos poucos e não conseguiu tirar o câncer mesmo com o risco de morte. Com todo esse descaso, não poderia ter outro fim;, lamentou.

Já a aposentada Luísa Santana dos Reis, 65 anos, tenta há cinco meses uma cirurgia no HBDF. Ela tem um câncer na face e fica ansiosa toda vez que toca o telefone de sua residência. ;Penso logo que é alguém do hospital me chamando para fazer a cirurgia. O tempo está passando e sei que a cada dia minhas chances são menores. Reconheço o esforço dos médicos, mas eles são poucos e não dão conta de atender todo mundo;, lamentou.

MORTAL
Segundo a Sociedade Brasileira de Cirurgia de Cabeça e Pescoço (SBCCP), o câncer de boca está entre os cinco que mais matam pacientes do sexo masculino no Brasil. As vítimas são, em sua maioria, pessoas que bebem e fumam excessivamente.


Salário nada atraente

O fator financeiro também é um dos motivos para que os novos cirurgiões de cabeça e de pescoço procurem as clínicas privadas. Hoje, o salário médio de um trabalhador como esse na rede pública não passa de R$ 3,5 mil por mês. Na rede particular, o médico pode tirar esse valor realizando apenas um procedimento de grande porte.

;Os oito (cirurgiões do HBDF) continuam lá porque gostam do que fazem, em solidariedade aos mais pobres, que não têm condições de recorrer à rede privada. Ocorre que quase todos não querem fazer 40 horas semanais. Fazem 20 horas na pública e o restante do tempo na privada. Porém, a maioria nem considera trabalhar para o governo devido ao baixo salário. Uma cirurgia fora equivale a um salário no HBDF;, explicou um servidor.

O diretor do HBDF, Luiz Carlos Schimin, admite o problema, mas destaca que uma melhora significativa no atendimento de todas as áreas não depende apenas do esforço dos profissionais da unidade. ;É verdade que temos um deficit, mas isso por uma série de fatores. Primeiro porque o Hospital de Base é o único que realiza esse tipo de procedimento no DF. Para a gente abrir mais espaço para essa especialidade teria que cortar de outra. Precisaríamos descentralizar, ter um outro hospital com estrutura para dividir essa demanda. Aí entra a questão do profissional. Não se pode criar um setor em outro hospital e lotar lá apenas dois médicos. Mas o interesse dos jovens em se especializar em cirurgias de alta complexidade é cada vez menor;, avaliou o diretor.

Luiz Schimin faz um apelo à sociedade: ;A missão do Hospital de Base deveria ser a de atender somente os procedimentos que realmente sejam de alta complexidade, integrando ensino e pesquisa com qualidade. Só que mais da metade do que nós atendemos é de pessoas que poderiam recorrer a postos de saúde. Isso nos sobrecarrega demais.;
Para o diretor da Sociedade Brasileira de Cirurgia de Cabeça e Pescoço do DF (SBCCP), Flávio Carneiro Hojaij, enquanto o profissional dessa área não for valorizado no setor público, o quadro dificilmente vai se alterar. ;Enquanto o médico não for reconhecido pelo governo como um delegado, um policial federal, entre outras profissões, os jovens não vão se interessar e, no futuro, vai faltar profissional no mercado, principalmente especializado em cirurgias complexas, não só como as de cabeça e pescoço, mas de outras áreas como cirurgias cardiovasculares, por exemplo;, acredita.

PARA SABER MAIS

Dois anos de estudos

A cirurgia de cabeça e pescoço é uma especialidade cirúrgica que trata principalmente os tumores benignos e malignos da região da face e do pescoço, mas não abrange os tumores ou doenças do cérebro e outras áreas do sistema nervoso central , nem as da coluna cervical. A especialidade é regulamentada e reconhecida pela Associação Médica Brasileira (AMB).

Entre as cirurgias mais comuns realizadas pela especialidade estão as de tireoidectomias, traqueostomias, cirurgias de glândulas salivares, tumores da boca e da laringe. A formação do cirurgião de cabeça e pescoço é realizada nos centros formadores e tem duração de dois anos, com pré-requisito de formação em cirurgia geral.