Toda vez que o pioneiro Geraldo Silva, 83 anos, sobrevoa Brasília de avião, o senhor de olhos espertos e cabelos ralos e brancos quase não reconhece a cidade. Surpreende-se com o aglomerado de casas e de pessoas que se juntaram ao Plano Piloto. ;Quase não dá mais para ver o formato do avião;, observou. Cenário muito diferente do que ele viu quando chegou à capital, em 17 de abril de 1960.
Geraldo também era outro naquela época. Exibia um vasto bigode imponente, que combinava bem com a farda de primeiro-tenente do Exército, com a qual desembarcou em Brasília. Baiano de Ilhéus, Geraldo veio com os militares que formaram a primeira polícia da nova capital, a Guarda Especial de Brasília (GEB). ;Desisti de uma vida confortável na minha terra natal, onde eu administrava várias fazendas da família, para comer poeira no cerrado.;
O jovem tenente sentiu saudades da praia. Mas seguiu firme no propósito de uma nova vida. ;O que me trouxe para Brasília foi a possibilidade de carreira. Tudo aqui estava começando e eu também queria construir um futuro;, afirmou. Geraldo participou dos momentos mais importantes da história de Brasília. Coordenou a segurança no dia da inauguração. Guarda ainda hoje, autografada, a foto que tirou em frente à bancada onde se encontrava Juscelino Kubitschek. Orgulho de proteger quem ;inventou; uma cidade em meio ao nada.
História
O militar aposentado estava na primeira missa de Brasília não apenas como espectador, mas também como organizador do esquema de segurança do evento. Católico, o pioneiro não esquece as lágrimas do então presidente ao ver Brasília nascer com a bênção da maior autoridade da Igreja: ;JK estava muito emocionado. A voz do papa João XXIII ecoou de auto-falantes naquela ocasião e ele abençoou Brasília em português. Foi inesquecível, memorável;.
Como tenente da GEB, Geraldo montou o esquema de segurança do primeiro desfile de 7 de setembro da capital, em 1962. Viu os aviões da Esquadrilha da Fumaça rasgarem o céu inconfundível de Brasília pela primeira vez. Ele guarda todos esses momentos em fotografias. Tem veia de repórter fotográfico. É também um dos leitores mais vorazes do Correio Braziliense, que acompanha desde 1960 e onde assinou uma coluna militar, há 50 anos. Tudo que diz respeito a Brasília interessa a seu Geraldo, como é carinhosamente conhecido.
Ele também foi o comandante do policiamento no processo de transferência da Cidade Livre. Com o fim das obras de Brasília, o local onde ficavam as casas e os comércios de madeira improvisados deveria ser desativado. ;Era uma ordem do governo. Mas as pessoas resistiram, lutaram para ficar ali. Não houve confronto com a polícia. Antes que isso acontecesse, o Congresso criou, por meio de lei, o Núcleo Bandeirante;, lembrou.
Brasília gelada
Geraldo presenciou, de perto, quando Brasília ficou coberta de gelo, em 1964. ;Parecia mentira. A cidade ficou cheia de granizo. Tive que ver de perto;, lembrou. O pioneiro correu para a Esplanada quando soube da novidade. No dia seguinte, a foto dele, incrédulo como um menino, remexendo o gelo, com ministérios ao fundo, estampou uma página de jornal.
No mesmo ano, o policial pioneiro assumiu o cargo de diretor de trânsito. Trabalhou nessa função durante menos de um ano. Hoje, sente-se sufocado pela quantidade de veículos que circulam nas ruas do DF: mais de 1 milhão. ;É tanto acidente, violência. O que falta é projeto de educação no trânsito, minha gente;, alertou.
Modelo
Geraldo Silva é dono de uma longa história como líder comunitário. É o fundador de pelo menos 35 prefeituras comunitárias em Brasília. Criou a Associação de Apoio aos Moradores do Plano Piloto, que deu origem aos conselhos comunitários das asas Sul e Norte, em atividade ainda hoje. ;Eu era uma ponte entre o povo e o governo, a segurança. Andava pelas ruas, como policial, e procurava saber do que as pessoas precisavam. Naquela época, em 1962, nós tínhamos os Postos de Assistência e Segurança (PAS);, disse.
;Pelo menos 15 policiais cuidavam da unidade e vizinhança, composta por quatro quadras. Nos PAS, as pessoas também davam entrada em pedidos de documentos, por exemplo. Tudo para facilitar a vida do povo. Hoje mudou muito. Esse serviço foi burramente desativado. O governo precisa escutar mais quem fez a história de Brasília;, reclamou.
Fotógrafo
Um dos passatempos preferidos de Geraldo é fotografar a cidade, principalmente da janela de casa, na 206 Sul, onde vive há 43 anos. O fotógrafo amador encontra beleza em quase tudo. Com olhar treinado, em meio às árvores secas, ele captura um ipê-amarelo. Mais alguns flashes e lá está um canteiro florido. ;O povo fala tanto dessa seca de Brasília. Eu não me concentro nisso. Tento ver o lado bom de tudo. Encontrar o belo. Tudo na vida tem que ser assim;, ensinou. Seu modelo fotográfico favorito é o céu de Brasília. ;É um céu bíblico;, definiu.
Em abril, ele comemorou os 50 anos da chegada a Brasília. O jantar com a família teve até bolo especial, com imagem da escultura Dois candangos. Na casa de Geraldo, todo ano tem festa em 17 de abril. ;Sempre comemoro a minha vinda para Brasília. Esta cidade me trouxe muita alegria;, disse, ao lado da mulher, Regina Pelosi Silva, 75 anos.
Regina, baiana como ele, de Ilhéus, veio para Brasília há 48 anos. O casal tem duas filhas ; Haydée e Fernanda Maria ;, um genro ; Fernando, casado com a primeira ; e dois netos brasilienses, Lucas e Luíza. ;Gostei daqui logo de cara e me mudei. Brasília era muito solidária;, relatou a matriarca. É justamente da solidariedade que Geraldo mais sente falta. Ele, que esteve presente nos momentos mais marcantes da história da cidade como policial, hoje não carrega armas no bolso e sim um terço, que reza todos os dias.