Ele ouve a cena, mas não enxerga. Com uma bengala de 1,30m, o cineasta João Júlio Antunes, 44 anos, percorre os espaços onde os atores vão contracenar e orienta como cada profissional deverá estar posicionado. Sim. O homem de origem humilde é o diretor do filme Uma vela para Deus e outra para Beto, que está sendo gravado na cidade para concorrer ao Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Esta é a primeira vez que um deficiente visual conduz uma obra cinematográfica no mundo.
O curta-metragem conta a história de Beto, um banqueiro que, aconselhado por um padre, abre mão de toda a sua fortuna para ser monge. A decisão mexe com o destino de muitos, mas, especialmente, com os interesses de sua noiva e de uma empresária endividada, que luta para manter uma fábrica de cadeiras de rodas que assegura o trabalho e a dignidade de dezenas de famílias. O personagem principal é vivido pelo ator e jornalista João Campos. ;É um projeto muito especial para mim. A princípio eu pensei: ;trabalhar com um diretor cego? Como vai ser?; Mas vi que não tem diferença alguma e, da equipe, ele (Antunes) é um dos mais safos e sabe bem o que quer;, elogiou o protagonista.
As gravações começaram em julho deste ano. A última cena foi feita ontem, no saguão de desembarque do Aeroporto Internacional de Brasília. ;Atenção, Lucianna! Gravando!”, referiu-se Antunes à atriz Lucianna Mauren, que interpreta a noiva de Beto. Durante duas horas e meia, o diretor participou intensamente das filmagens. Depois de cada interpretação, Júlio perguntava aos atores como eles tinham feito a cena, que era repetida várias vezes, até que tudo saísse com perfeição. ;Esse é o terceiro filme que eu faço e não vi diferença dele para um filme normal. Tem todas as confusões de um set de filmagem. O diretor só não tem a visão, mas é um filme que está sendo bem conduzido e com final surpreendente;, garantiu o ator Eduardo Cintra Ribeiro. Na produção, ele é o padre que aconselha Beto a largar a fortuna.
A obra tem o patrocínio da Petrobras e o apoio da Secretaria de Cultura do DF pelo Fundo de Arte e Cultura (FAC). Para Júlio, dirigir um curta-metragem não foi o mais complicado. Até conseguir chegar onde está, ele conta que enfrentou muita dificuldade, sobretudo pelo fato de poucas pessoas acreditarem na sua capacidade. ;Ao mesmo tempo que é uma experiência muito gratificante, falta credibilidade. Todo mundo acha que tem alguém por trás de mim. Tenho minhas limitações, mas tenho superado minhas próprias expectativas;, disse ele ao Correio.
Para o roteirista e mestre em educação especial José Luiz Mazzaro, a incapacidade está nas pessoas que agem com preconceito. ;Assim como a gente aprende a andar, nós também aprendemos a enxergar. O João perdeu a visão aos 30 anos e, portanto, tem armazenadas em sua mente as imagens. Temos grandes cegos na história mundial que fizeram grandes realizações. Eles podem tudo o que a imaginação permitir;, defendeu. ;O fato de ter um diretor cego representa um marco no cinema mundial;, completou.
O filme está sendo produzido pela Konim, Cinema Vídeo Comunicação. Após a finalização, a ideia é que ele seja apresentado no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro e exibido em universidades, escolas públicas e simpósios, uma vez que o curta-metragem tem objetivo de inclusão. No filme, um dos personagens é uma cadeirante, interpretada pela jornalista Carla Maia, portadora de deficiência física na vida real. Os DVDs do filme terão audiodescrição, capa impressa em braille, libras e legendas em diversos idiomas. Em nenhuma cena os personagens conversam de costas, a fim de que os surdos possam fazer leitura labial.
Juramento
Esta é a primeira vez que João Júlio Antunes dirige um filme. Na verdade, é a realização de um sonho de menino. Quando criança, ele reunia os colegas e simulava a produção de um filme. Mesmo depois de grande, Antunes não deixou o amor pela arte. De 1980 a 1989, ele trabalhou como ator em diversas peças em Brasília, mas se viu obrigado a desistir da carreira para cumprir um juramento. Pouco antes de morrer em uma mesa de cirurgia, a mãe pediu para que ele abandonasse a carreira artística. ;Meu filho, o teatro não traz camisa para ninguém;, teria dito a mãe, ainda deitada no leito do hospital.
Júlio Antunes seguiu a vida trabalhando como garçom. Na nova profissão, ele divertia os clientes com a criação de personagens durante o atendimento. Em 1996, Júlio começou a perder a visão devido a uma rara doença chamada retinose pigmentar, que faz com que as células da retina, responsáveis pelo recebimento de luz , sejam destruídas aos poucos. Neste caso, a visão periférica é a primeira a ser comprometida. Com isso, Júlio não conseguia mais trabalhar. Tropeçava e derrubava as bandejas. Há 14 anos, quando tinha apenas 30 anos, perdeu a visão completamente. A data, Júlio lembra bem: 12 de junho de 1996. ;Era uma quarta-feira. Acordei sem visão, mas não aceitava que não enxergava mais. Fiquei um ano sem sair de casa, não cortava o cabelo e engordei 20 kg. Foi trágico demais;, contou.
Certo dia Júlio precisou sair de casa para resolver problemas pessoais, mas bateu a cabeça em um poste e desmaiou. Chovia muito. Júlio pisou na lama, se sujou, mas, mesmo machucado, conseguiu chegar ao destino. Foi nesse dia que ele resolveu dar um rumo à sua vida e se matriculou em uma escola para estudar braille. Descobriu uma nova profissão: a de massagista. Quando começou a aceitar a deficiência visual, Júlio descobriu que seus rins já não funcionavam como antigamente e passou a se submeter a várias sessões de hemodiálise. Em uma das vezes que passou pelo tratamento, Júlio teve uma parada cardior-respiratória. Enquanto estava sendo reanimado, ele teve uma visão da mãe, vestida de jaleco branco. ;Ela chegou e colocou um rolo de filme no lugar do soro. Me deu um sorriso e foi embora. Nessa hora eu entendi que estava livre do juramento de desistir da carreira de ator;, contou o diretor, emocionado.
Na ficção
Dirigindo no Escuro (Hollywood Ending, 2002), ficção dirigida por Woody Allen, conta a história de Val Waxman, um diretor de cinema de muito sucesso no passado, mas que foi abandonado pelos grandes estúdios por causa de seu temperamento excêntrico. Vendo a carreira de Val no fundo do poço, sua ex-mulher convence o dono de um estúdio a chamá-lo para dirigir um projeto. Porém, pouco antes de começar a gravar o filme, Waxman desenvolve um tipo de cegueira psicossomática. Para não perder a chance, ele esconde seu problema e começa a gravar o filme assim mesmo.
Para ajudar
O curta-metragem Uma vela para Deus e outra para Beto é um filme sem fins lucrativos, feito com poucos recursos financeiros. Empresários que queiram ajudar a transformar o sonho de João Júlio Antunes em realidade podem ligar para 3201-3535 e 8416-2309.