O telefone toca. Um homem de voz firme como rocha atende. Diante da primeira pergunta, o homem responde, com um sotaque inconfundivelmente mineiro: ;Sim, tá tudo bem. Estou pelejando...;. E continua: ;Preparo um discurso sobre a morte de Juscelino, que foi no dia 22, no último domingo, e ninguém disse nada. Ninguém mais lembra. É um pena;. E se indigna, com a voz mais firme e mais mineira ainda: ;Mataram o melhor presidente deste país, uai! Foi um assassinato;.
Encontro marcado para sexta-feira, às 10h30. O homem, de 1,72m, no corpo esguio de 65kg, veste terno escuro bem-cortado, sapatos da mesma cor e caminha com altivez. É impressionante ; e irretocável ; a sua elegância. Ele nos espera no escritório-biblioteca, com vista para a piscina. Para chegar ali, é preciso descer uma escada em espiral de madeira, que nos leva à parte inferior da casa, na QI 19 do Lago Sul.
Sob o tampo de vidro da mesa grande onde trabalha, fotos da família: a mulher, os filhos, os netos e os bisnetos. Em cima do vidro, livros, anotações, canetas, agendas, compromissos. Na parede atrás da mesa, fotos de Juscelino Kubitschek em vários momentos. JK, aliás, está em cada cômodo daquela casa. Até mesmo em busto-miniatura, ao lado de uma réplica do Palácio da Liberdade (sede do governo de Minas Gerais), em cima de uma estante bem-decorada, logo na entrada.
O dono daquela casa conheceu Juscelino como poucos. Mais que isso: foi amigo, confidente, cúmplice. E hoje o que dá sentido a esse homem de voz firme e andar elegante é não deixar que se perca a memória do presidente bossa nova. ;Outro dia, fui dar uma aula sobre Brasília, no Instituto Histórico e Geográfico do DF, e nem as professoras conheciam bem o Juscelino. Meu Deus, como pode! Se nem elas sabem, não podem ensinar!”.
O homem nos oferece água e café quentinho. A longa prosa mineira vai começar. Mais que uma conversa, é uma aula de história. Uma viagem ao passado, para entender o presente. Uma volta à origem de Brasília, a terra de onde jorraria leite e mel. E poucas pessoas sabem contá-la tão bem quanto aquele homem. A propósito: o dono daquela casa se chama Affonso Heliodoro, é mineiro de Diamantina e tem inacreditáveis 94 anos.
É preciso viajar. Voltar à Diamantina das Gerais, para se conhecer este homem que tatuou a memória de JK na alma. E foi naquela cidadezinha que, em 1916, nasceu o filho do meio do tenente José Heliodoro e da dona de casa Maria Dolores.
Eram seis irmãos. ;No dia do meu aniversário de 7 anos, meu pai foi assassinado numa invasão de bandidos à cidade;, conta.
Maria Dolores, sozinha, virou pai e mãe. Ele teve de deixar o grupo escolar onde aprendia as primeiras letras com a professora Júlia Kubitschek, a mãe de Juscelino. ;Nossa vida ficou muito difícil. Papai dizia a mamãe: ;Você provê, eu provenho;. Ele morreu, mamãe ficou sem o salário e não tinha como nos sustentar. Tivemos que deixar a casa onde morávamos;, conta.
Dos sete irmãos, três foram para casas de parentes. Os outros seguiram para Pirapora, para a casa da avó materna. ;Apesar de a nossa vida ter mudado de uma hora pra outra, tive uma infância feliz. Tomava banho no rio e acreditava que a vida podia ser boa.;
Aos 10 anos, a avó do menino magricela mudou-se para Belo Horizonte. ;Fui matriculado no Grupo Escolar Pedro II, onde fui alfabetizado. Dona Virgínia Brandão, no primeiro dia de aula, na hora da chamada, chamou pelo meu nome. Eu respondi: ;É eu;. Ela me repreendeu na hora. Nunca me esqueci disso.;
Sobrevivência
Aos 10 anos, Affonso conseguiu o primeiro emprego. Era ajudante numa fábrica de doces. ;Entregava balaios de doces em padarias, bares e nas casas especializadas. Trabalhava das 5h da manhã às 7h. E andava a pé mais de 5km para chegar ao trabalho. Os donos da fábrica gostavam de mim e me deixavam almoçar com eles à mesa. Aos 13 anos, aprendi com eles francês e inglês.;
Da fábrica de doces, aos 14 anos, Affonso foi para a Padaria Globo. Começou como balconista e virou caixa. Até chegar a gerente. Em 1933, aos 17 anos, ingressou na Força Pública (como chamavam a Polícia Militar à época). ;Fui em busca de um ideal. Mesmo como soldado, já fazia serviço de segundo-sargento. Virei auxiliar de escrita, no Hospital Militar.;
Veio o exame para cabo. Depois, sargento. Chegou a aspirante, em 1937. E logo a oficial. ;Meu primeiro contato com JK foi quando ele era prefeito de Belo Horizonte. Foi na casa da Naná, irmã do Juscelino. Eu era ajudante de ordem do coronel Vicente Torres, que era amigo da família.;
JK se elege deputado estadual, depois governador, em 1955. ;Fui nomeado ajudante de ordem do gabinete militar do palácio, depois chefe. A primeira pessoa que o Juscelino via assim que chegava ao palácio era eu;, diz. E conta, emocionado: ;Vivi mais com Márcia e Maristela (filhas de JK e Sarah) do que com meus três filhos;. E se diverte: ;Um dia, dona Sarah me pegou, fardado, plantando bananeira, com as meninas pequenininhas;.
JK parte para a campanha presidencial. Affonso vai junto, conhecendo um Brasil gigante. JK vence a eleição. Affonso, agora formado em direito pela Faculdade Nacional de Direito do Rio de Janeiro, recebe duas missões, além da subchefia do governo civil. Iria verificar as metas econômicas e os serviços de interesses estaduais ; promessas da campanha. ;Ele foi o único governante que teve um programa de governo. Além de Brasília, havia 30 metas para realizar;, conta.
Sem JK
Brasília virou real. Meses antes da inauguração da capital, Affonso chegou à terra de JK. ;A cidade representou a integração nacional. A conquista do Centro-Oeste. Ela juntou o Brasil;, elogia. E decreta: ;Mas também foi a razão da cassação e da morte de JK. Foi o fim de uma época do país;. Em 22 de agosto de 1976, depois de exilado, proibido de voltar à cidade que inventou, JK sofreu um acidente de carro no Km 165 da Rodovia Presidente Dutra, quando viajava de São Paulo para o Rio de Janeiro. Tinha 73 anos. ;Não tenho provas, o inquérito nada acusou, mas foi um assassinato. Mataram o presidente;, esbraveja o comedido Affonso.
O país chorou, escondido. Ficou de luto, também escondido. Era a ditadura militar. Repressão e tortura. Silêncio. Medo. ;Foi a linha dura, o grupo da extrema direita que tomou conta do poder. Não confundi esse grupo com todas as Forças Armadas.; O já coronel Affonso seguiu sua vida em Brasília. Dedicou-se a escrever. Era a forma de não deixar a história morrer. JK, pelo menos para ele, continuava vivo. ;Rabisquei sete livros;, diz. Modéstia. Contou sua história, a de Juscelino, passeou pelas crônicas e pelos contos. Virou escritor. Prepara mais uma obra: Minha história ; relato despretensioso dos meus 94 anos de luta. ;É para os meus netos e bisnetos;, ele deseja.
Dez meses antes de morrer, na primeira página do livro Por que construi Brasília, JK escreveu, em 16 de outubro de 1975, ao fiel Affonso, em letra bonita e português impecável: ;Amigo dos mais chegados ao meu coração, companheiro que enfrentou comigo todas as vicissitudes das lutas que se desenrolaram no meu caminho, colaborador que me ajudou a divulgar o esforço que o meu governo realizava em prol do Brasil e dono de uma fidelidade que o colocou sempre ao meu lado na hora da vitória, ou nas agruras do temporal que tive que suportar. Afetuoso abraço;.
Saudade
Na casa iluminada do Lago Sul, de um dos quartos, Affonso apreciava todo dia o Memorial JK ; seu fundador e secretário-geral, de 1981 a 1995. ;Hoje, não posso mais olhar. Há um prédio no meio;, desola-se. Perto da piscina, construiu um ateliê. Nas horas vagas, pinta suas memórias ; Diamantina e paisagens que lembram as Gerais.
Como se não bastasse, ainda é presidente do Instituto Histórico e Geográfico do DF ; que sobrevive sem verba nenhuma do governo. ;Vou quase todas as tardes lá. Há muito para fazer e trabalhar. Precisamos proteger Brasília;, conclama. Segredo da resistência e da longevidade? ;Dormir e comer pouco. E escolher sempre boas companhias.;
A família cresceu. Os três filhos deram-lhe cinco netos, que geraram cinco bisnetos. Affonso passa por um momento delicado com a frágil saúde da mulher, a segunda, com quem se casou há 54 anos. E a quem ainda chama de ;meu bem;.
No fim da entrevista, a simpaticíssima Conceição San Marco, mineira de Ouro Preto, 88 anos, falou ao Correio. Emocionada, olhou para o marido, ajeitou o cabelo dele para a sessão de fotos e o definiu, apaixonada: ;Ele não tem limites. Acredita no que faz;. E pede que o marido fique mais alegre no retrato: ;Sorria, meu amor!”. Ele riu, como menino peralta. E agradeceu à amada: ;Agora, sim, vendo você, eu posso rir;. Depois, beijou-a delicadamente na boca. Ambos se emocionaram.
De que o diamantinense tem saudade? Pela primeira vez, a voz firme do homem de 94 anos fraqueja. E ele assume: ;De JK. Ele é o meu ídolo. Ninguém se igualará a ele nas qualidades morais, pessoais e políticas;. E Affonso chora, sem vergonha de saber chorar. Este homem que chora é, ainda, a memória viva de uma cidade que nasceu de um genial assombro. E foi feita por um estadista que ousou construir um país melhor. Affonso sabe por que chora.