Jornal Correio Braziliense

Cidades

Time formado em sua maioria por médicos já atravessa três décadas

Com o sugestivo nome de Realmatismo, eles têm muita história para contar. Tudo começou como uma forma de relaxamento

Brasília, 1980, casa do cirurgião pediatra Geraldo Secunho. O jardim abrigava um campo de futebol por onde passavam as chuteiras dos médicos e residentes do Hospital de Base de Brasília e do Hospital das Forças Armadas (HFA) que, entre uma sutura e outra, se reuniam para jogar uma pelada. De lá para cá, entraram outros jogadore,s nem todos médicos; os campos mudaram, mas o objetivo das reuniões permaneceu inalterado. Naquele gramado começou uma história de amizade que já dura 30 anos. Nasceu uma família chamada Realmatismo.

A linha do tempo do time de peladeiros é montada facilmente pelas memórias do pediatra Luiz Fernando Atta, 56 anos. ;Esse cara tem memória de elefante;, brinca Geraldo, 67 anos. Não é mentira. Luiz sabe detalhes mínimos, casos curiosos, datas precisas. O álbum de retratos antológicos lhe serve de apoio. Ali estão alguns dos principais momentos que os realmatistas já viveram em 30 anos de existência.

Ele conta como eram os tempos de Aca, time da Academia de Medicina da Universidade de Brasília (UnB), do qual fez parte na década de 1970. ;Fomos tricampeões. Invictos.; O Aca foi uma das bases do que se tornaria o Realmatismo no futuro. ;Vários colegas foram residentes no Hospital de Base e no HFA. Cada hospital tinha um time e fomos nos conhecendo. Aí, o Geraldo começou a convidar a gente para jogar bola na casa dele;, relembra Luiz.

Até 1993, o grupo não tinha nome e era conhecido apenas como time dos médicos. O batismo aconteceu em uma churrascaria, na volta de uma viagem desportiva para Goiânia ; eles perderam feio: o time adversário era composto por ex-jogadores profissionais. Geraldo levantou a questão da identidade e, por gostar do espanhol Real Madrid, sugeriu ;Real Brasília;. Luiz aprimorou. ;Como era um grupo de médicos, pensei em Realmatismo e todo mundo gostou;, conta.

Tricolores
Aos poucos, a convocação passou a exibir também pacientes. ;O Romero, por exemplo, é paciente. Psiquiátrico;, alguém provoca. Cícero Romero Santos, 54 anos, técnico operacional dos Correios, é alvo constante de zombarias. ;Ele entregou a carta de Pero Vaz de Caminha (escrita em 1500);, grita um colega. A história, assim como Romero, é antiga. Em 1999, o Realmatismo foi convidado a disputar um torneio. Na final, enfrentou uma equipe bem mais jovem. O treinador dos adversários gritava, na beira do campo, para seu atacante: ;Pittbull, esse velho está acabando com você! Corre, Pittbull!” O ;velho; era o zagueiro Romero. Luiz não deixou passar. ;Fui lá e disse ao cara: ;Ele não é velho. É um senhor de idade. Eu peço respeito porque ele jogou ao lado de Lenônidas da Silva;.; O Realmatismo venceu, e Romero, que nada sabia, ficou sem entender por que estranhos pediram para tirar fotos com ele quando o jogo terminou. ;Chegaram a me pedir um autógrafo.;

Diploma de medicina não é pré-requisito, mas educação e respeito são. ;É claro que, durante o jogo, alguém xinga, fica mais esquentado; mas, passado o portão do gramado, acabou. Aqui, o clima é descontraído, não pode ter confusão;, garante Luiz. Além da camaradagem, outro fator influencia na aceitação do candidato. ;Se torcer para outro time, não faz mal, mas torcer para o Fluminense ajuda;, confessam os tricolores, maioria surpreendente. O clima amistoso convenceu o cardiologista Vitor Pacheco, 42 anos, também tricolor, a trocar o Clube Atlético Médico pelo Realmatismo. ;Meu time tinha perdido para o deles na semifinal de um campeonato. Achei o grupo tão legal que disse que ia torcer para eles na final;, lembra. Aquele título não vingou, mas o time foi reforçado por um carioca bom de bola e de samba, ritmo oficial dos peladeiros.

Em 1993, Geraldo Secunho decidiu virar maratonista e se afastou um pouco do futebol. As peladas tiveram de encontrar outro lugar. Foram muitas sedes: Clube do Exército, duas chácaras no Gama, Academia do Corpo de Bombeiros, entre outras. As mudanças constantes de cenário importaram pouco. As travas do Realmatismo resistiram e o motivo é simples. ;O que importa não é nem o futebol. Todo mundo sabe que aqui ninguém vai ganhar nada além de amizade. O mais importante é a confraternização depois do jogo;, explica o paisagista Epaminondas Jarosczynsk Ribeiro, 39 anos, que, para facilitar, é conhecido como Dinho.

A farra pós-partida não seria a mesma se Inácio de Loiola Aires de Moura não esbanjasse seus dotes culinários. O porteiro de 58 anos (;essa é a potência do meu motor;, brinca) se juntou aos bons nos tempos em que a sede passou pelo Gama, por intermédio de Silvério Carvalho Freire Filho, urologista, um dos fundadores do Real. No dia em que a reportagem foi recebida pelo grupo, um bacalhau à Loiola esperava o fim do jogo para ser apreciado. Além de chef, Inácio é piadista nas horas vagas. Ninguém escapa. A deixa da carta de Pero Vaz é dele.

Talento hereditário
A história da irmandade também se escreve com as letras dos filhos da realeza. Ao longo de três décadas, o número das chuteiras dos garotos cresceu e eles integraram o time dos pais. ;Quantos anos eu tenho? De Realmatismo ou de idade? Não interessa, é a mesma coisa;, diz o educador físico Bruno de Faria Atta, 28 anos, filho de Luiz Fernando Atta. É o mesmo caso de André Metzker Ferro, 14 anos, prole do ginecologista Adalberto Xavier Ferro Filho, 46 anos, 17 dos quais partilhados com o Real. ;Venho sempre. Aos sábados é mais fácil porque não tenho aula. Jogo com eles há dois anos;, explica André, enquanto se aquece para entrar na partida. Os times são balanceados tanto em qualidade quanto em idade. ;Os filhos já estão tocando o Realmatismo. A gente espera que eles deem continuidade no futuro;, diz Geraldo.

O futebol tem um poder de catarse infalível com os homens. No entender dos 50 bravos do Realmatismo, os dois encontros semanais são antídotos para o estresse cotidiano. ;E mesmo se você estiver com problemas, as pessoas são solidárias, mostram que se importam, oferecem ajuda;, conta Dinho. Se a dificuldade for médica, então, o campo é o melhor lugar para estar. Exceto por uma especialidade, que talvez seja uma das mais importantes para um atleta: não consta do quadro um ortopedista. De qualquer maneira, esse Realmatismo faz muito bem à saúde.


Ídolo nacional
Nascido em 1913, Leônidas da Silva foi um dos mais importantes jogadores de futebol brasileiros da primeira metade do século 20. Deixou glórias para os torcedores do Flamengo, do Botafogo e do São Paulo. Em 1932, quando defendia o Bonsucesso, inventou o gol de bicicleta. Seu apelido, Diamante Negro, deu o nome ao chocolate, vendido até hoje. Integrou a Seleção Brasileira em 1929, em 1934 e em 1938. Aposentou-se em 1949, mas sempre esteve envolvido com o esporte. A saúde comprometida devido ao mal de Alzheimer o levou à morte em 2004, aos 90 anos.