Flores, orações e visitas constantes, durante 11 anos, ao túmulo da mãe. Era essa a rotina de homenagens prestadas por Held da Costa Araújo, 39 anos, à familiar até o dia em que ele descobriu que na cova, no cemitério de Taguatinga, outro corpo estava sepultado. A revelação ocorreu em um momento de dor ainda maior, em julho de 2007, quando o filho pediu a exumação do corpo da mãe para enterrar junto do pai, que acabava de falecer. Durante o processo, no entanto, em vez do corpo de Izabel da Costa Araújo, a matriarca, o que o filho encontrou foram restos mortais com roupas masculinas, como uma calça jeans e uma camisa de manga comprida. O sepultamento errado aconteceu em janeiro de 1996, quando o Governo do Distrito Federal ainda era o responsável pela administração dos cemitérios no DF.
Após a abertura de um inquérito policial e uma ação na Justiça, o filho descobriu que o corpo da mãe estava enterrado no túmulo ao lado, no qual a identificação tinha o nome de José Domingos dos Santos, cujo corpo fora exumado. Pelo erro administrativo nos registros de endereçamento dos túmulos, a 8; Vara da Fazenda Pública do DF condenou, na última quinta-feira, o GDF a pagar a Held uma indenização de R$ 10 mil. A família do homem enterrado no lugar de Izabel chegou a procurar um advogado para buscar os mesmos direitos, mas desistiu, antes mesmo do processo instaurado. ;Eu precisava tomar uma atitude. Nós íamos lá não só no Dia de Finados, mas sempre;, disse o Held, que recebeu emocionado a notícia da indenização. ;Não é o dinheiro, mas sim o sentimento de que a justiça foi feita;, concluiu. A irmã dele, Mara Regina da Costa Araújo, também ficou aliviada com a sentença. ;Ela me ligou chorando. Passamos o dia mais leves;, considera Held.
O governo local ainda pode recorrer da decisão, bem como o autor da ação, que tinha pedido inicialmente um valor de R$ 30 mil para a retratação. ;Na verdade, o nosso objetivo maior nesse caso era a localização dos restos mortais, o que foi obtido. Ainda não sabemos se há interesse em recorrer, já que a indenização é uma coisa secundária, feita a título repressivo pelo descaso das autoridades competentes;, considerou o advogado da vítima, Adalberto Nogueira Aleixo. Com o erro, Held teve que enterrar o pai em uma outra cova, já que não poderia ficar esperando os trâmites legais. Com isso, pagou ainda mais, gastando no enterro cerca de R$ 4 mil. ;Mas agora vou fazer o que queria, vou colocar os dois enterrados juntos;, afirmou o filho.
Foram dois anos, a partir da descoberta do erro, para que Held encontrasse o local onde estavam sepultados os restos de sua mãe. Na ação, o DF sustentou ;ilegitimidade passiva e prescrição;, alegando ;ausência de obrigação de indenizar e falta de nexo de causalidade;. Mas os argumentos não foram aceitos pela juíza do processo. ;A perda dos restos mortais da falecida causou um profundo sofrimento e angústia no autor, afetando profundamente o seu sentimento de respeito e amor à alma de sua mãe;, considerou a magistrada Gislaine Carneiro Campos.
Durante todo o processo, Held e os familiares afirmam que nunca foram procurados pelo GDF nem pela empresa Campo da Esperança, responsável pelo cemitério na época das exumações.
Memória
CPI dos cemitérios
Denúncias de irregularidades nos cemitérios deram origem a uma CPI na Câmara Legislativa, que começou três dias antes de 2 de novembro de 2007 (Dia de Finados). Um casal decidiu antecipar a visita ao túmulo do filho no cemitério de Taguatinga e se assustou ao descobrir que os restos mortais do garoto não estavam na sepultura. A partir daí, vários casos semelhantes apareceram. Em 19 de março de 2008, o
Correio publicou reportagem na qual revelava que o contrato de concessão assinado entre o GDF e a Campo da Esperança era questionado na Justiça porque o capital social do consórcio vencedor da licitação era 14 vezes menor do que o exigido no edital. Outras denúncias surgiram depois, como dívidas com jardineiros e sacos cheios de vísceras humanas encontrados em uma funerária. No entanto, apesar de todas as irregularidades, a CPI dos Cemitérios terminou sem nenhuma punição. Os deputados da oposição que integravam a comissão protestaram contra o encerramento das investigações.
Nova investigação
O governo local decidiu ontem que vai refazer auditoria na empresa que administra, desde 2006, os seis cemitérios do DF. Cinco meses depois de anunciar que iria romper o contrato com a Campo da Esperança e retomar a administração dos cemitérios, a Secretaria de Justiça e Cidadania (Sejus) será novamente a responsável pela investigação. Os integrantes do grupo devem ser nomeados na semana que vem.
No início deste ano, o GDF criou uma comissão para avaliar os serviços da empresa. O relatório final apontou várias irregularidades, como cobrança indevida de preços (ver Memória). A auditoria rendeu multa à Campo da Esperança. Em março, a comissão recomendou que o governo rescindisse o contrato(1). Mas a Procuradoria do DF encontrou irregularidades no relatório da comissão, que não teria dado amplo direito de defesa à empresa.
;Vamos reabrir o processo para que não haja essas falhas. Hoje, temos grande parte dos problemas solucionados. A Campo da Esperança tem atendido nossas demandas sempre;, afirmou o secretário de Justiça, Geraldo Martins. Em nota, a Campo da Esperança diz não ter ;nenhuma objeção; à nova auditoria, ;desde que seja respeitado e garantido o direito de se manifestar e esclarecer todas as questões levantadas;. Também declarou estar ;certa de que cumpre todas as obrigações contratuais;.
1 - Exonerado
Em março deste ano, o então secretário de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos, Flávio Lemos, decidiu rescindir o contrato com a Campo da Esperança. Na época, Lemos montou uma Comissão de Assuntos Funerários em que se discutia a contratação de pessoal, terceirização de serviços, e aquisição de equipamentos. Ele não chegou a implantar o projeto porque foi exonerado no fim daquele mês. Sua demissão teve relação direta com a prisão de um homem, em Taguatinga, que transportava R$ 104 mil. O autor da denúncia disse que o destino do dinheiro seria o chefe da Sejus.