Muitas pessoas costumam dizer que só acreditam em alguma coisa vendo. Mas o olhar pode levar o ser humano a assumir como concreto o que não passa de ilusão. Os artistas fazem esse jogo ilusório volta e meia. A perfeição de certas técnicas obriga o espectador a se questionar. A velha história do ;parece mas não é;. Os gregos, precursores de tantas artes, começaram a brincadeira(1). Os barrocos inventaram o trompe l;oeil (em francês,;engana o olho;), método que produz imagens tão reais que criam a ilusão de óptica de que os objetos estão em três dimensões. Os renascentistas a desenvolveram à perfeição com a descoberta da perspectiva. Ontem foi a vez de os brasilienses vivenciarem uma experiência curiosa dessas. Um muro do Colégio do Sol, no Lago Norte, se tornou uma cidade pelas mãos da arquiteta e artista plástica Déa Garcia. Uma homenagem a uma arte cada vez mais rara e à diversidade da arquitetura brasileira.
O trabalho de Déa teve que ser monumental: a tela em branco era um muro de 120 metros quadrados que divide o pátio da escola e o terreno vizinho. A ideia de transformar o espaço em arte veio das diversas visitas que a artista faz ao colégio para buscar a filha, Anita, 10 anos. ;A escola é cheia de arte e, no entanto, sempre achei esse lugar, tão usado pelas crianças, sem vida;, avalia. Há mais ou menos três meses, Déa sugeriu ao diretor da escola, o professor Erly Ferreira Gomes, uma intervenção artística. ;Não pensei duas vezes;, afirma Erly. E aprovou.
Déa já tinha um plano na cabeça. ;Achei que seria uma oportunidade de resgatar o trompe l;oeil. É uma técnica tão difícil ; é feita em grandes proporções, requer andaimes, desenhos precisos ; que os próprios artistas contribuíram para sua extinção;, lamenta. Primeiramente, ela concebeu um desenho europeizado sugerindo uma paisagem da Itália, país em que a técnica foi amplamente difundida durante o Renascimento. Mas, assim como é preciso olhar duas vezes para reconhecer uma ilusão, a artista repensou o motivo. ;Decidi explorar a arquitetura brasileira, que, tendo sido influenciada por tantas culturas estrangeiras, se tornou única e muito rica;, explica.
Foram dois meses de trabalho constante, sempre acompanhado por observadores astutos. ;Recebi muitas sugestões dos alunos. Teve um que me alertou sobre a variedade de cores: ;Você não tem nada laranja. Não se esqueça de colocar alguma coisa laranja;;, recorda Déa.
O resultado foi a criação do mural Vila do povo brasileiro. Impossível como é representar todo o léxico arquitetônico do Brasil, prevaleceram as imagens clássicas, como o estilo do interior de Goiás, o barroco de Minas Gerais, a taipa brasileira descendente da africana, a oca, elementos do modernismo, a palafita, a azulejaria portuguesa e até os arranha-céus comuns tanto em São Paulo quanto em outras metrópoles do mundo. E todos esses exemplos, defende a artista, podem ser encontrados em Brasília. ;Pessoas de todos os lugares do Brasil vieram para Brasília e guardam as referências dos lugares de onde vieram. Mesmo que você tenha nascido em Brasília, tem um parente que mora em outro estado e consegue assimilar os traços dessa arquitetura.;
Imersão
A principal diferença entre outras formas de pintura e o trompe l;oeil é a relação entre a obra e o público. ;Você vai a um museu e contempla um quadro. Com o trompe l;oeil, não. Você não tem escolha. A interação é inevitável;, explica Déa. A técnica também foi escolhida para o local como uma provocação à percepção visual dos alunos. A artista acredita que é preciso instigar a formação gráfica das crianças ; a interpretação da imagem é tão importante quanto a da escrita. Ela lembra que a sua curiosidade para a arte foi influenciada pelos desenhos do pai, que é publicitário. Dono de um arsenal de lápis de cor, tintas e outros materiais insuportavelmente atraentes à mente criativa de uma criança, ele esbravejava quando se dava conta de que a filha havia circulado pelo escritório e usado os materiais. ;Mas, por mais que eu bagunçasse, ele nunca trancou a porta;, lembra Déa, risonha.
;Assim como os jogos de videogame, o mural também é uma experiência virtual;, explica. A diferença é que neste virtual há a oportunidade do toque. E as crianças tocaram. Objetos reais, como maçanetas de portas e lamparinas, foram instalados no mural, e não faltou quem tentasse abrir as portas. Queriam ver o resto da mulher que aparece atrás de uma porta entreaberta.
Pressupor a necessidade de explicação aos jovens é redondo engano. São eles que ensinam os interlocutores. ;A vila foi feita com um técnica que mistura pintura com o 3D. Dá pra ver que ela utilizou a perspectiva;, ensina Pedro Henrique Fernandes e Lopes, 12 anos. Murilo Vasconcelos, um ano mais novo que o colega, agrega: ;Achei muito interessante, deixa o colégio mais colorido. A cultura influencia muito a vida das pessoas;.
Os dois, com os amigos Júlio Marino Figueiroa da Conceição e Patrick Boescheinstein, ambos com 11 anos, têm um grupo ; ou seria uma editora? ; de quadrinhos no colégio. Em poucos minutos, um adulto de penúltima geração se espanta com a versatilidade dos meninos-marchandes. ;No começo parecia arte abstrata, não dava para ter muita noção de como ia ficar;, argumenta Murilo. Questionado sobre o significado de ;arte abstrata;, ele não tibubeia: ;É uma arte sem figuras definidas, mas que simboliza alguma coisa;. É espantador.
1 - Arte de iludir
O naturalista romano Plínio, o Velho, conta uma anedota entre Zeuxis e Parraso, pintores renomados da antiguidade helênica. Em uma disputa para eleger o melhor entre os dois, Zeuxis pintou um cacho de uvas. De tão realista, diz a história, passarinhos tentaram bicar as frutas. Passado um tempo, ele pede a Parraso que puxe as cortinas que cobriam a obra para que o rival a visse. O pedido é, na verdade, a confirmação da vitória do oponente: as cortinas haviam sido pintadas por Parraso.