A procuradora Eunice Amorim Carvalhido assume na próxima quarta-feira o cargo de chefe do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), depois de uma crise sem precedentes envolvendo dois integrantes da instituição, entre os quais o seu antecessor, Leonardo Bandarra. Serão dois anos de mandato com a missão de estancar uma guerra de colegas que extrapolou ataques na rede interna, tornou-se pública e abalou a credibilidade do órgão responsável pelo zelo na aplicação da lei e da ética.
Com 23 anos na carreira, Eunice precisa trabalhar para dentro e para fora: pacificar o órgão e mostrar à opinião pública que o trabalho de promotores e procuradores não foi contaminado pelas denúncias da Operação Caixa de Pandora. Em entrevista ao Correio, a futura procuradora-geral de Justiça, nomeada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva depois de figurar como segunda colocada numa lista tríplice eleita pela classe, afirma que o MPDFT demonstrou seriedade durante a investigação das denúncias feitas por Durval Barbosa contra Bandarra e a promotora Deborah Guerner.
Eunice ressalta que, desde o início, os dois promotores do MPDFT auxiliam a investigação conduzida pela subprocuradora-geral da República Raquel Dodge e a instituição já tomou diversas providências relacionadas ao caso, como bloqueios de bens dos envolvidos, ajuizamento de ações de improbidade administrativa e afastamentos de deputados. A nova chefe da instituição afirma que ainda é cedo para tirar conclusões sobre as denúncias contra Bandarra, mas também não desacredita o delator da Pandora, Durval Barbosa. "Tudo depende do conjunto da prova", explica.
Doutoranda em direito na Universidade de Buenos Aires, Eunice é uma das responsáveis pela criação das Promotorias de Defesa do Patrimônio Público e promete tratar o tema como uma de suas prioridades. Com personalidade forte, ela pretende imprimir um estilo próprio na gestão, mas sempre tendo como meta a tolerância com as opiniões divergentes. Garante tratamento respeitoso ao futuro governador que será eleito em outubro, mas assegura que não vai coordenar reuniões de governo com propostas de acordos para solucionar problemas administrativos. "Esse não é o papel do procurador-geral", afirma.
A senhora assume a chefia do MPDFT depois de um período conturbado em que o procurador-geral passou a ser investigado por corrupção. Como pretende tirar a instituição da crise?
O MPDFT não está em crise. Os promotores e procuradores estão vindo trabalhar, as audiências são realizadas e as ações são propostas. A atuação do MP continua. A instituição não está sendo afetada. Os dois colegas que estão sendo investigados e acusados da prática de atos ilícitos são casos isolados.
O fato de ter envolvido o então chefe da instituição colocou todo o MP numa situação de constrangimento?
Sem dúvida. Ficamos muito tristes por pesar sobre o nosso chefe algumas acusações. Nós jamais imaginaríamos que isso pudesse acontecer. Mas acho que ainda não podemos dizer que ele tenha praticado nenhum ato. O MP investiga e depois é que se comprova aquilo que estão dizendo. Não conheço o processo. Não posso dizer quais são as provas colhidas. Penso que somente posso me manifestar sobre isso quando a investigação estiver findada.
O Ministério Público do DF sempre teve dois grupos, um deles liderado por Leonardo Bandarra, e uma oposição forte a ele. Como será sua atuação para amenizar esse conflito? É possível acabar com essa divisão?
Acredito que sim porque quando eu me candidatei, elaborei um plano de gestão e o meu foco era o tempo de cuidar do MPDFT. É tempo de ser tolerante, de ser compreensivo, de procurar ouvir, de procurar entender para julgar, para decidir, de agir com equilíbrio, de ser paciente, não ser apressado, não ser afoito. A questão de ser paciente é muito importante. À medida que você apressa o seu juízo, você pode cometer erros.
A senhora se considera integrante de algum grupo?
Não me considero. Fui presidente da Associação (do MPDFT) num tempo em que não existiam grupos. Nós éramos uma equipe e depois fui diretora da Escola (Superior do MPDFT). Depois me dediquei ao mestrado, à área acadêmica, à minha casa, às minhas meninas, ao meu marido. Não concluí ainda o doutorado, mas retornei para esse desafio.
Na sua avaliação, por que a senhora foi escolhida pelo presidente Lula entre os eleitos na lista tríplice?
Sou muito católica, muito crente em Deus. A primeira coisa é porque Deus queria que isso acontecesse. Creio muito nisso. Tenho 23 anos de Ministério Público, dos quais 21 dedicados ao Distrito Federal. Nunca me afastei do órgão de execução, sempre tive uma atuação muito incisiva nas questões de defesa do patrimônio público. Não tenho dados seguros para afirmar qual a razão da escolha de meu nome para o exercício do cargo, mas recebi a indicação como uma espécie de prêmio pela dedicação ao Ministério Público.
Na gestão do Leonardo Bandarra, alguns promotores se incomodavam com a relação considerada muito próxima com o governo local. Como será a sua relação com o futuro governador que será eleito em outubro?
A primeira coisa que o Ministério Público tem que fazer é preservar a sua autonomia e a sua independência. E a relação com os órgãos que a gente controla não me parece que deva ser próxima. Deve ser respeitosa. O Ministério Público deve, precisa, tem o dever de tratar o novo governador como ele merece, mas sempre respeitando a autonomia e a independência funcional. Não abro mão.
Esse método que foi muito utilizado na gestão anterior de discutir com o governo termos de ajustamento de conduta e acordos que evitem demandas judiciais é eficiente? A senhor concorda com esse modelo?
Quando o promotor ajuíza uma ação civil pública, vai ter de esperar um bom tempo para resolver o problema. Talvez 10 anos, 15 anos. E como a lei nos deu esse instrumento, o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) para resolver o problema, o MP busca uma atuação mais eficiente. Não adianta abarrotar o Judiciário e o problema continuar. É preciso buscar alternativas para desafogar o Judiciário e resolver aquele problema que traz transtornos à comunidade. Nesse ponto, o TAC é bem interessante. Mas não acho que seja uma forma de transigir com a legalidade. É preciso estabelecer normas para resolver um problema.
Então esse modelo de membros do MP se sentarem com integrantes do governo para buscar soluções vai continuar?
Isso será realizado no âmbito das promotorias. O procurador-geral não faz isso. Não é atribuição do procurador-geral. Ele atua nas ações originárias que não comportam esse tipo de procedimento. As promotorias que cuidam de patrimônio público, de ordem urbanística, de meio ambiente podem agir assim, segundo estabelece a lei.
Nos últimos anos, em alguns assuntos houve uma participação do procurador-geral numa coordenação desses acordo. Bandarra levava os promotores para debater com o governador...
Isso não é uma atribuição do procurador-geral. É do promotor que está atuando. Essa é uma questão de independência funcional. O promotor é que vai atuar. Eu tenho muita resistência em me envolver nisso porque não é minha atribuição. Até porque a Procuradoria-Geral de Justiça não é um órgão consultivo.
Qual, então, será a prioridade da senhora?
O meu plano de gestão está assentado em três dimensões. A primeira está relacionada com as questões institucionais, como estimular o debate interno e a participação de todos os membros do MPDFT nos processos de planejamento e execução das tarefas e fomentar o relacionamento de harmonia, de solidariedade, de convergência, de respeito a eventuais divergências e críticas. Essa é uma missão que quero executar de 4 de agosto, quando tomar posse, até o último dia do mandato.
A senhora está dizendo que quer pacificar o MPDFT?
Com certeza. Não tenho a vaidade e a pretensão de pacificar sozinha. Eu quero buscar nos colegas maneiras de estabelecer esse respeito às divergências. O debate para mim não é confronto. É uma forma de construir um caminho. A gente precisa pensar que o outro pode ter um entendimento diverso do que a gente. Uma outra dimensão do meu plano está relacionada às funções administrativas. E aí está inserido investir na capacitação de servidores. E será diuturna.
Para a população, para o senso comum, o MP estava dentro da Caixa de Pandora por causa de dois promotores. Mas sabemos que o MP começou o trabalho e foi fundamental para o início das investigações...
Claro. O MPDFT foi quem investigou e está investigando. Temos dois promotores designados pelo procurador-geral da República para dar continuidade a essas investigações. Foram ações para anulação de contratos, de improbidade administrativa, penais, cautelares, de bloqueio de bens, de afastamento de parlamentares. Isso tudo decorre da nossa atuação. Nosso Ministério Público é sério. Age eticamente. Sabe por que? Mesmo surgindo indícios, acusações de que dois dos nossos colegas poderiam estar envolvidos na Operação Caixa de Pandora, a investigação continuou. Dois colegas são investigados e outros dois continuam a investigação. Parece um paradoxo? Mostra que o MPDFT é muito sério.
Como ficam as Promotorias de Patrimônio Público, o Centro de Informações e o Núcleo de Combate às Organizações Criminosas (NCOC), a área de investigação, na sua gestão?
O MPDFT deve seguir o seu caminho, com as suas coordenações, com as suas investigações, com esses órgãos que estão sendo constituídos. No curso, a gente vai aperfeiçoar, se for o caso. Às vezes a gente precisa aperfeiçoar aqui ou acolá, à medida que as necessidades surgem. Temos de ter uma estrutura que comporta o andamento dessas investigações.
Mas hoje a estrutura é suficiente? Há necessidade de mudanças?
A maior demanda é por espaço físico. Mas as pessoas que trabalham lá são muito competentes e estão dando conta. Pode ser que amanhã ou depois surja uma necessidade. Surgindo, terão total apoio da procuradora-geral, mesmo porque o Núcleo de Combate às Organizações Criminosas e o Centro de Informação são órgãos de assessoria da Procuradoria-Geral.
São pessoas da sua confiança?
São pessoas que desempenham as suas atribuições com lealdade ao MP, com seriedade. Acho que essa questão de confiança no MP tem uma conotação um pouco diferente. É preciso que a relação de confiança seja em relação à instituição.
O desdobramento da investigação da Caixa de Pandora será um ponto de destaque na sua gestão?
Certamente. Tenho um pessoal competente para fazer isso. A minha atuação sempre foi na área de patrimônio e sou procuradora criminal. Não temos nenhuma dúvida em relação a isso. Quando houver indícios de prática de crimes, vamos denunciar.
Na sua avaliação, qual é o peso que se pode dar a um depoimento do Durval Barbosa?
Eu não conheço as provas e tenho um hábito de dizer que o MP precisa ser cauteloso. Por quê? Para não cometer erros que possam causar danos à imagem de pessoas. É uma atribuição da gente. No processo penal, as declarações das vítimas, das testemunhas, do co-réu são analisadas em conjunto. Não se pega uma declaração isolada para dizer que alguém é culpado ou inocente. O conjunto da prova tem que ter harmonia, inclusive, com a prova documental.
O Durval foi muito investigado pelo MP e já é alvo de várias ações. A atuação dos promotores nesse caso sempre foi muito
firme. De repente, ele mira o procurador-geral. Durval é um inimigo do MP?
Não sei. Não tenho opinião formada sobre isso. Acho que mesmo as pessoas que acusam necessariamente não estão mentindo ou dizendo a verdade. Tudo depende do conjunto da prova. Penso que seria muito precipitado da minha parte falar sobre isso.
Temos um quadro polarizado na disputa eleitoral. O MP terá uma boa relação com Roriz e Agnelo? Com qual seria melhor?
Acho que o MP tem o dever de ter uma relação respeitosa com o governador, independentemente de quem seja.
O fato de Roriz ser alvo de várias investigações atrapalha a relação com o MP?
Parto do seguinte princípio: se ele for eleito, primeiro precisa ser respeitado pelo fato de ser governador, independentemente de investigações.
Ele será bem recebido?
Toda e qualquer pessoa será bem recebida aqui . Somos educados e a lhaneza no trato é um dever de todos nós, notadamente quando se está a serviço do Estado.
Na sua opinião, a lei da ficha limpa deve vigorar nessas eleições?
Isso não é nem opinião minha. É do TSE, que já julgou e disse que a lei é aplicável nessas eleições. Embora a gente tenha no Supremo Tribunal Federal duas liminares suspendendo a aplicação e outras três em que não foi concedida a liminar.
Vai ser uma batalha dura no STF?
Tudo o que chega ao Supremo é uma batalha dura. A lei da ficha limpa está assentada em dois princípios constitucionais: a exigência da probidade para exercício do cargo e a presunção da não culpabilidade. O meu entendimento é que a lei da ficha limpa é uma condição de elegibilidade e não uma pena. A inelegibilidade é avaliada no momento do registro da candidatura.
O que se pode esperar da sua atuação?
Vou brigar de forma muito combativa para que o MPDFT possa alcançar os seus objetivos, para que a gente possa continuar a agir eticamente. E precisamos atuar de forma eficiente. Para isso, proponho uma administração participativa. Vai ser a minha luta, a minha marca. As questões de defesa do patrimônio público também serão consideradas fundamentais.