Jornal Correio Braziliense

Cidades

Invasões em áreas públicas e comerciais aparecem na ilegalidade

Apesar de agredirem o projeto da cidade, as invasões nas áreas comerciais e também residenciais proliferam com a leniência do governo local

Pousar o olhar sobre as quadras comerciais de Brasília é desolador para quem aprendeu a admirar e a respeitar a beleza única da capital planejada. Na Asa Norte, as invasões aparecem sobre a laje dos prédios comerciais e remetem aos barracos incrustados nos morros cariocas. Um passeio a pé ou de carro pela W3 revela de tudo um pouco: antena improvisada de TV, varal de roupa, casas de madeira, de vidro ou de tijolo. Mas, sobretudo, uma absoluta crença na impunidade com as ilegalidades que roubam a beleza do conjunto urbanístico e escondem o horizonte tão valorizado por Lucio Costa.

Na Asa Sul, os puxadinhos do comércio cresceram para o lado e para o fundo dos lotes. Ao longo dos anos, os empresários privatizaram as áreas de uso comum e abocanharam parte do cinturão verde da cidade-parque sonhada por Lucio Costa. Contra a vontade dos defensores da preservação do projeto original, o desrespeito ao tombamento foi premiado pelo governo com a legitimação das áreas invadidas. Após ganhar dois anos de prazo para regularização, os donos das lojas não apresentaram os projetos e colheram mais uma vitória: terão até 30 de abril do próximo ano para padronizar as invasões limitadas a seis metros.

Dos 220 blocos comerciais da Asa Sul, 195 entregaram o projeto na Administração Regional. Desses, 20 já estão aprovados e os demais estão sob análise. Sob a condição de ter o nome preservado, um empresário da Asa Sul aceitou falar abertamente sobre o assunto. Há 13 anos no mesmo endereço ele acaba de ampliar o negócio e, mesmo sem autorização do governo, avançou os 6m regulamentados pela lei dos puxadinhos. Cobriu parte da área verde com cimento e um toldo que ainda está sendo montado.

Segundo ele, o projeto está na Administração de Brasília há mais de ano. ;Agora que as eleições chegaram, você acha mesmo que eles vão liberar alguma coisa? Isso é uma guerra política. E, dependendo de quem ganhar a eleição, nós teremos mais liberdade para trabalhar ou a cobrança ficará ainda maior;, avaliou.

O empresário defende que se esqueça o tombamento para que a cidade cresça livremente. ;Não estamos no interior. Isso aqui não é Tiradentes ou Ouro Preto (cidades históricas de Minas Gerais tombadas). Se quisessem preservar Brasília não deveriam ter permitido tantas invasões, como Santa Maria, Estrutural e tantas outras.;

A reportagem percorreu toda a W3 Norte e flagrou as irregularidades. As lajes dos blocos comerciais das 700 gradativamente se consolidam como moradia. Na 712 Norte, o alto do prédio está praticamente todo ocupado. Do chão, avista-se uma casa de madeira em uma das pontas e na outra, um enorme telhado parece cobrir uma área de lazer. Pelo interfone, uma moradora foi incisiva. ;Olha, minha filha, não quero dar entrevista.;

No bloco ao lado, a imagem é semelhante. A laje está quase totalmente ocupada. Tem um enorme toldo marrom, e, próximo a ele, uma sequência de grades que parece cercar áreas de lazer. Adiante, o proprietário fez uma parede usando grade e folhas de alumínio. Colado a essa estrutura, tem-se um barraco de alvenaria. Ali, também impera o silêncio de quem vive ou trabalha no local.

O Correio também não teve autorização para subir até o terraço. Nenhum dos proprietários dos blocos visitados foi localizado. Os comerciantes disseram que não conheciam ou não tinham o contato para fornecer. Ao construir casas sobre os prédios, além de invadir, os responsáveis desvirtuam a ocupação da área, que é comercial. Sobrecarga no transporte público, no abastecimento de água, de luz e no trânsito. A maior concentração das invasões verticais pode ser vista mais frequentemente no trecho entre a 704 e a 716 Norte, de frente para a avenida, sob o olhar de todos, inclusive do poder público.

Informalmente, a reportagem conversou com cinco moradores de diferentes quadras da W3. Apenas um aceitou falar, desde que tivesse o nome preserado. ;O aluguel é barato. Conforto não tem, mas dá para viver;, disse o homem de 55 anos que sobrevive de bicos como eletricista para sustentar três filhos pequenos e a mulher. A quitinete alugada por ele tem pouco mais de 30 metros quadrados divididos em um quarto, sala conjugada com cozinha e um banheiro.

Moradora da área residencial colada ao comércio local, a médica Juliana Almeida, 45 anos, lamenta a transformação da paisagem. ;Isso para mim não tem outro nome: é a favelização do comércio da Asa Norte;.

Fiscalização faz vista grossa

Além de distorcerem as características da cidade Patrimônio da Humanidade, os puxadinhos horizontais ou verticais agravam problemas como poluição visual, o adensamento e falta de vagas. Comerciantes da Asa Norte já reivindicam os mesmos direitos dos colegas da Asa Sul. E nos comércios ao longo da W3, proliferam um tipo de invasão apelidada de ;esticadinhos; por Alfredo Gastal, superintendente regional do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). ;Há dois anos, entreguei um ofício ao governo alertando sobre isso e nada foi feito.;

Consultada sobre as construções em cima das lajes dos prédios comerciais da Asa Norte, a Administração de Brasília informou, por meio da assessoria de imprensa, que todos os puxadinhos verticais são irregulares e que a competência por combater a ilegalidade é da Agência de Fiscalização (Agefis). Já o diretor de Fiscalização de Obras da Agência de Fiscalização, Valterson da Silva, assegurou que a Agefis tem embargado essas obras e já determinou a demolição de todas. ;Todavia (a fiscalização) tem enfrentado dificuldades logísticas e legais para executar as demolições, pois, na maioria das vezes esses ;puxados; aéreos são parte de domicílios;, justificou.

Segundo Silva, por se tratarem de residências, os fiscais só podem entrar com autorização judicial e, além disso, é difícil subir com equipamentos para remover as edificações. Quanto aos puxadinhos dos comércios da Asa Sul, Valterson lembra que a Lei n.; 821/10 esticou o prazo de adequação para 30 de abril de 2011. ;Existe ainda decisão judicial impedindo a execução de demolições;, completou.

Justiça
O Ministério Público do Distrito Federal entrou com uma ação direta de inconstitucionalidade contra a lei que permitiu o adiamento de um ano nas fiscalizações. Para a promotora de Defesa da Ordem Urbanística Luciana Medeiros, o governo errou ao não cobrar a regularização. ;Foi feito um grande esforço e, no momento de cobrar o cumprimento da lei, o GDF decide ampliar o prazo;, reclama a promotora. Se a lei que permitiu a ampliação do prazo for julgada inconstitucional, o MPDFT vai pedir na Justiça a demolição de todos os puxadinhos que não se adequaram às normas da Lei n; 766/08.

O superintendente do Iphan, Alfredo Gastal, critica a ampliação do prazo para a regularização dos puxadinhos. ;O adiamento das ações de fiscalização foi muito negativo. A definição da lei foi fruto de muitas negociações, todos tiveram que fazer concessões para chegar a um consenso. Quando chega a hora de cumprir as normas, o governo volta atrás. Isso joga a regularização no completo descrédito;, critica Gastal.

Colaborou Helena Mader