Jornal Correio Braziliense

Cidades

Olhos voltados para a nossa capital

Brasília sediará a partir do próximo domingo a reunião do Comitê do Patrimônio Mundial da Unesco. Embora a cidade não seja o tema do encontro, especialistas de todo o mundo poderão observar se ela tem sido bem ou mal preservada

A capital dos monumentos arquitetônicos, da amplidão de áreas verdes e dos prédios com pilotis receberá os maiores especialistas em tombamento de todo o mundo. A partir do próximo domingo, eles estarão reunidos na cidade para a reunião anual do Comitê do Patrimônio Mundial da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), a primeira realizada no país. Brasília foi escolhida para sediar o encontro no ano de seu cinquentenário, mas a cidade anfitriã não conseguiu arrumar a casa a tempo de receber os convidados. Os visitantes de todo o mundo poderão admirar os cartões-postais da capital federal, mas também vão ver de perto todos os problemas que envergonham os brasilienses: engarrafamentos, invasões de área pública, construções irregulares e camelôs espalhados pela zona central.

As agressões à cidade entristecem a servidora pública Maria José da Gama Monteiro, 55 anos, defensora da preservação da capital. Ela vive em Brasília desde 1961. O pai, João Joffre Monteiro, foi um dos pioneiros. ;Ele colocou o primeiro caminhão de asfalto na W3;, conta orgulhosa. Maria José conheceu dezenas de cidades no Brasil e no exterior, mas é por Brasília que declara sua paixão.

Ela afirma que até hoje faz turismo cívico e gastronômico. ;Eu me hospedo em hotéis, vou aos monumentos, faço o roteiro dos restaurantes que não conheço. Caminhar pela quadra sob as árvores e sentir aquela tranquilidade toda me faz a mulher mais feliz do mundo. Por tudo isso, acho que a cidade precisa de cuidados;, comenta a moradora da 307 Sul.

As ilegalidades cometidas em Brasília já foram assunto de um relatório feito por especialistas ligados à Unesco que visitaram a região em 2001. O urbanista holandês Herman Hooff e o arquiteto argentino Alfredo Conti produziram uma lista de recomendações para tentar preservar o Plano Piloto. Na última década, pouca coisa mudou e a maioria das observações foi ignorada (veja quadro na página 30).

Impactos negativos
O relatório de Conti e Hooff não incluiu Brasília na lista do patrimônio em risco, mas fez alertas importantes. ;As mudanças que ocorreram na cidade e em suas vizinhanças alteraram parte do seu conceito original, mas, até a presente data, não a ponto de deixá-la inelegível para o status de patrimônio mundial;, diz um trecho do relatório, de 2001. ;Entretanto, algumas mudanças já tiveram impactos negativos e, se mais intervenções indesejáveis ocorrerem, o resultado poderia ser a perda das características marcantes que fazem de Brasília uma cidade única.;

As ;intervenções indesejáveis; dentro da área tombada não cessaram. Uma das orientações dos especialistas foi a melhoria do sistema de transporte público para ;desencorajar o acesso de carros à área governamental e ao centro da cidade;. Hoje, a região central e a Esplanada dos Ministérios são os locais com maiores problemas de trânsito e sofrem com constantes engarrafamentos. Estacionar nessas áreas é missão quase impossível nos dias úteis. As sucessivas promessas de construção de vagas subterrâneas não avançaram. A dupla de especialistas também aconselhou que ;os conjuntos residenciais permanentes à beira do lago fossem banidos;. Mas eles não param de se multiplicar.

Apesar desses problemas, a avaliação de especialistas é de que não há risco de a cidade perder o título de Patrimônio Mundial. Nem há como assegurar que a situação de Brasília será analisada pelos representantes da Unesco oficialmente durante a reunião, já que os assuntos são tratados de acordo com um rodízio e este ano é a vez de bens tombados da Ásia e do Pacífico. Mas é muito difícil que, estando na cidade, os especialistas não observem o que há de bom e
de ruim por aqui.

Urbanismo
A arquiteta Maria Elisa Costa, filha do urbanista Lucio Costa, não acredita que o título de patrimônio corra perigo. ;Apesar de esse ser o sonho dourado dos especuladores, acho que não há esse risco. E se isso acontecesse, seria a suprema desmoralização cultural para o nosso país;, diz. Ela enaltece a inovação que Brasília representou ; o que justificou a inscrição da cidade na lista do patrimônio mundial apenas 27 anos depois de sua inauguração. ;O Plano Piloto de Lucio Costa, contando com a qualidade dos projetos de arquitetura de Oscar Niemeyer, criou uma paisagem construída inédita, que dialoga com o horizonte aberto do Planalto Central;, diz a arquiteta.

Para o superintendente do Iphan no DF, Alfredo Gastal, cogitar a exclusão de Brasília da lista do patrimônio mundial seria ;alarmismo;. ;Não devemos ter uma visão ;policialesca; da Unesco. O objetivo da entidade é preservar Brasília, que é a única cidade moderna inscrita na lista do patrimônio mundial;, explica Gastal. ;Apesar das pressões imobiliárias e políticas, a cidade soube como resistir. A reunião da Unesco vai transformar a cidade em uma vitrine e ajudar a resolver os problemas pontuais;, comenta o superintendente do Iphan.

Na opinião de arquitetos e urbanistas, um dos maiores avanços na proteção do projeto urbanístico é o início da elaboração do Plano de Preservação do Conjunto Urbanístico de Brasília ; uma espécie de plano diretor da área tombada, que vai determinar todas as normas e diretrizes para ocupações. A Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente fez licitação para contratar uma empresa responsável pelo estudo, que deve ficar pronta até o ano que vem.

A professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília Sylvia Ficher acredita que a criação do plano é um passo importante para resolver os problemas atuais e coibir novos abusos. Para ela, o traçado do Plano Piloto de Lucio Costa continua intacto. ;Brasília está muito preservada. O projeto original continua sendo tão reconhecido quanto era em 1960. Hoje, mesmo com o Plano Piloto praticamente todo ocupado, continua clara a concepção original.;