Todo dia é dia de salvar vidas para Maria dos Anjos de Menezes, 66 anos. Ela não é médica, bombeira ou nada parecido. Trabalha como diretora da Escola do Parque da Cidade, também conhecida como Promoção Educativa do Menor (Proem). Há 23 anos, a senhora de jeito afável e abraço aconchegante deposita a própria fé em meninos e meninas quase sempre invisíveis aos olhos da sociedade. O Proem recebe alunos com defasagem de idade/série. Os motivos para o atraso na vida escolar são variados. Alguns enfrentam severos problemas familiares. Outros estão em liberdade assistida, já passaram pelo Centro de Atendimento Juvenil Especializado (Caje). Ainda há aqueles que dividem o tempo entre o crime e o aprendizado escolar. ;Os mais complicados são os meus preferidos;, admite a diretora.
Quem passa em frente ao Proem percebe de imediato: aquela é uma escola especial. Não há muros. Apenas cercas rodeadas de arame farpado. Os buracos nas armações de ferro são marcas das tentativas de fuga dos alunos. Eles sempre driblam o guarda que fica o tempo todo no portão e ganham as ruas. Alguns fogem para se drogar, outros para roubar e há quem apenas queira dar um passeio no meio do dia. Dos Anjos pega o próprio carro e vai atrás de cada um deles. Só volta quando os encontra. Os alunos não costumam ir longe. As aulas são de ensino fundamental e ocorrem em período integral. Os adolescentes tomam café da manhã, almoçam, tomam banho e jantam na escola. As turmas têm até 15 integrantes e o atendimento é individualizado. Os professores tentam respeitar o ritmo de cada um. O critério para aprová-los é a melhoria de postura diante dos problemas cotidianos.
Dos Anjos assume o desafio com uma dedicação sacerdotal. Aposentou-se há mais de uma década, mas não quis deixar seus meninos para trás. Para ela, seria como largar à deriva os próprios filhos. Continua na escola como diretora sem vínculo, ou seja, ganhando apenas o valor do cargo comissionado. Uma quantia irrisória, se comparada ao antigo salário. ;Não tem como abandonar essas pessoas. Elas já foram muito maltratadas pela vida. Se eu conseguir melhorar as coisas, nem que seja para um só, já ganhei meu dia.; Dos Anjos tem uma missão: desviar os rumos do destino de pessoas que há muito tempo já deixaram de se sentir seres humanos, amadas, bem-vindas e respeitadas. A educadora está em Brasília desde 1981. Veio do Maranhão e mora no Lago Norte. Não perdeu o sotaque agradável nordestino nem o jeito caloroso de se comunicar. Abraça e beija quem se aproxima sem se intimidar.
Preocupação
A principal função de Dos Anjos não é apenas administrar os funcionários e as verbas da escola. Ela quer acima de tudo trazer os alunos de volta para uma realidade na qual sonhar, mudar e sentir alegria é possível para qualquer um. ;A alguns deles eu tenho que dizer: ;Ei, você é gente!’. Não consigo desistir de nenhum. Nem dos mais perdidos. Eu durmo e acordo preocupada com o que vai ser deles.; A educadora olha com carinho para todos os 150 meninos e meninas. Sabe o nome de cada um. Conhece também a realidade por trás dos olhares acanhados. A maior dificuldade é sarar as feridas causadas por quem devia ser um porto seguro, exemplo de amor: os pais.
Felipe*, 14 anos, dormiu na aula um dia desses. A diretora quis saber o porquê. ;Meu pai chegou bêbado em casa, quis pegar minha mãe à força a noite toda. Bateu nela. Eu durmo em um colchão embaixo da cama deles. Não consegui dormir;, explicou o menino. ;Aqui nós temos muitos alunos maravilhosos, pessoas incríveis que nunca fizeram nada de errado. Mas sofrem demais;, afirmou Dos Anjos.
Danilo*, 15 anos, carrega no pescoço um terço. Não tem religião. Mas acredita que o artifício possa protegê-lo. Assim como ele, todos ali estão em busca de proteção. ;A escola é onde eles se sentem seguros. Esses meninos estão gritando por alguém que lhes dê limites, um norte a seguir.; No Proem, há aulas de música, serigrafia, dança, teatro. Mas o foco é a educação profissional. ;Já vimos muitos saírem daqui com carteira assinada. Temos parceiros que nos ajudam a dar cursos de informática e floricultura, só para citar exemplos.;
Dor
Nem sempre a batalha tem final vitorioso. Só este ano, três alunos do Proem foram assassinados. Apesar dos esforços da equipe da escola, eles não quiseram ou não conseguiram sair do crime. Outro levou cinco tiros quando chegava em casa, mas sobreviveu. Uma das meninas, de 15 anos, está foragida da Justiça. Ela matou um colega quando os dois brincavam de roleta-russa. O rapaz montou uma armadilha para a garota. Na vez dela de apertar o gatilho, era certo que a bala sairia. A menina bonita e de aparência frágil apontou o revólver para a testa do garoto. Tirou a vida de alguém como se deixar de existir fosse corriqueiro. Nunca mais apareceu na escola, nem em casa, até onde se sabe.
;É uma dor muito grande chegar ao colégio e receber esse tipo de notícia. A gente fica com uma tristeza horrível;, lamenta a diretora. Uma das histórias envolveu a família de Dos Anjos. Há anos, um dos 15 netos dela foi assaltado na W3 Sul, perto do Proem. ;Quando o menino que estava roubando viu que era meu neto, devolveu as coisas dele e ainda o escoltou até a escola. Me ligou depois, pedindo mil desculpas. Mas meu coração ficou desapontado demais. Não só pelo meu neto, mas porque penso demais nos que a gente não consegue salvar.;
Quando fala dos meninos e meninas, ela logo fica com os olhos transbordando em lágrimas. A voz muda, sai embargada, com o peso da realidade em preto e branco com a qual aprendeu a conviver. Dos Anjos mergulha nos dramas desses jovens como só as boas mães fazem. Ela escolheu os filhos que a vida lhe deu, além dos cinco que saíram de seu ventre.
Ela olha para um dos meninos mais raquíticos do colégio com jeito especial. Luís* tem corpo e cara de 10 anos. Mas tem 14. ;Eu fico pensando: meu Deus, será que esse menino vai ser um homem?; Na semana passada, Luís foi parabenizado pela diretora. ;Há sete dias ele não foge da escola para fazer coisa errada;, orgulhou-se Dos Anjos, como uma mãe que se contenta com qualquer sinal de esperança.
Revolução
Dos Anjos já cansou de escutar por aí que vive ;passando a mão na cabeça de marginal; e se irrita com a afirmação. ;Eu não trabalharia com crianças sem problema nenhum. Esses são os que mais precisam de carinho. Para mim, todos eles têm jeito. Não há caso perdido. O ser humano tem esperança, há sempre uma luz no fim do caminho.; A diretora tem motivos para ser tão otimista: ela e sua equipe de professores e coordenadores dedicados causaram verdadeiras revoluções na vida de muita gente. Muitos voltam para agradecer. ;Tenho ex-alunos que hoje são funcionários públicos, um é capitão do Corpo de Bombeiros, muitos seguiram carreira no Exército. De vez em quando bate um deles aqui na porta, todo bonito e de carrão, mostrando como mudou. Eles voltam para aconselhar quem ainda está aqui a tomar um rumo na vida.;
Lidar com os estudantes, como em qualquer outro centro de ensino, não é fácil. Mas no Proem os problemas se multiplicam. Com as dificuldades em torno do passe estudantil no DF, Dos Anjos e professores tiram do próprio bolso o dinheiro da passagem para que os alunos não deixem de ir ao colégio. ;Se eles não estiverem aqui, vão estar roubando, usando droga na rua.; Se algum deles falta à aula muitas vezes, Dos Anjos liga do próprio celular para os telefones móveis dos estudantes. ;O telefone da escola não liga para celular. Então eu uso o meu. Nenhum deles tem número fixo em casa.;
Os professores recebem um treinamento diferenciado para trabalhar ali. São avaliados por meio de provas para saber se têm o perfil e a resistência emocional necessárias para estar em um local onde o aluno requer ainda mais de paciência, atenção e envolvimento pessoal. No Proem, os 30 professores precisam, além de educar com o conteúdo dos livros, dar carinho, calor humano e, muitas vezes, ser figuras em quem os adolescentes possam se espelhar. É preciso saber, por exemplo, convencer um aluno bêbado ou drogado a entrar na sala de aula para aprender português e matemática. E impor respeito diante de agressões. Transformar hostilidade em amizade. ;Aqui não há um dia como o outro. É um eterno começar;, concluiu Dos Anjos.
*Nomes fictícios em respeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Para saber mais
Em 28 de agosto, o Proem completa 29 anos. A escola é mantida pela Secretaria de Educação do DF. Nasceu como um projeto experimental que visava ao atendimento de adolescentes carentes. A escolha do local de instalação da escola, no Pavilhão de Exposições do Parque da Cidade, visava providenciar acesso ao lazer e esporte aos estudantes. Em 1985, o colégio trocou de endereço. Mudou-se para a 908 Sul e continuou perto do Parque. Nessa época, o Proem se concretizou como uma instituição de ensino de atendimento socioeducativo. O centro de educação busca ações que possam contribuir efetivamente para promover a reinserção na escola e na sociedade dos adolescentes em situação de vulnerabilidade social e pessoal. Ali, os foco são o resgate da cidadania e a superação das desigualdades, por meio da mensagem de que educar é mais que reproduzir conhecimento. É sobretudo responder aos desafios da sociedade em busca de transformação.