Jornal Correio Braziliense

Cidades

Feitas de cristal e muita coragem

Duas alunas do Centro de Ensino Infantil 210 de Santa Maria compartilham uma doença rara que enfraquece os ossos, mas não a vontade de estarem vivas

Rebeca parece feita de cristal. Ao primeiro olhar, a sensação é que ela pode se quebrar ao menor toque. Os braços e as pernas revelam marcas de alguém que teve pressa de nascer, mas se recusa a viver em uma redoma de vidro. Cada osso do corpinho da menina conta uma história. Em apenas quatro anos de vida, são mais de 100 fraturas, todas anotadas no ;caderninho da dor;. Por dentro, Rebeca é forte. Fala com a voz suave de criança coisas que poucos adultos ousariam dizer com tanta leveza.

É inocente como só os pequenos são. Tem inteligência acima da média. ;O médico disse que eu ia morrer, mas olha eu aqui;, diz a garota, sem perceber o tamanho da batalha que venceu. Sua maior vitória é permanecer viva. Rebeca é portadora de Osteogenesis imperfecta, conhecida popularmente como síndrome dos ossos de vidro. A cada quatro meses, ela recebe, no Hospital Universitário de Brasília (HUB), doses de uma medicação que ajuda a fortalecer o tecido. Até hoje, no entanto, espera por um tratamento de fisioterapia. Nenhum médico do Distrito Federal quis assumir os riscos ou acreditar na possibilidade de reabilitação.

Bianca tem 5 anos. Também sofre as consequências de ter ossos fracos e guarda lembranças de mais de 50 fraturas. Diferentemente de Rebeca, ela desenvolveu a síndrome em um grau menor. Consegue, por exemplo, permanecer sentada por mais tempo. Ganhou até uma cadeira de rodas e começa a movimentá-la sozinha. Adora se vestir de cor-de-rosa, pentear os cabelos curtos ; que eram longos, mas tiveram de ser cortados por conta de uma travessura. Depois de uma queda, em janeiro, ela fraturou alguns ossos da cabeça e teve que passar por uma cirurgia.

Assim como a coleguinha, Bianca é forte. Este ano, foi rainha da pipoca em uma festa na escola. Ela desfilou e acenou como uma pequena miss. No concurso junino, o prêmio era uma bicicleta. Bianca sabe que não poderá usá-la, mas parece não se importar. Ela já tem em mente a próxima conquista: andar. ;Ela quer ficar de pé, mas, por enquanto, o médico falou para não deixar;, relata Maria Lúcia de Oliveira, 46 anos, avó da menina. É ela, que trabalha como diarista, quem cuida da neta. Desde que nasceu, faz tratamento no Hospital Sarah Kubitschek. Bianca vive em Santa Maria, com a avó, as tias e a mãe. Rebeca mora no Novo Gama (GO).

Além dos ossos de vidro, as duas crianças têm muito em comum. Encontraram-se por acaso e tiveram a mesma alegria há pouco tempo: começaram a frequentar a escola. Estão matriculadas no Centro de Ensino Infantil 210 de Santa Maria. No colégio, são rodeadas de cuidados, mas tratadas como qualquer outra criança pela equipe pedagógica. Professores, monitores, a diretora e todos os outros funcionários tiveram que se adaptar para receber as duas.

Bianca chegou há dois anos. Era a primeira vez dela na escola. Rebeca veio no ano seguinte. Depois de estudar em um centro de ensino especial, optou pela inclusão. Antes delas, nenhum dos educadores conhecia a doença. ;O segredo é não deixar o medo dominar. Bianca dança, usa a tesoura, entra na fila como os outros. Faz o melhor dela e quer sempre se superar;, explica a professora da pequena, Valdete Maria da Fonseca. ;A Rebeca é muito querida pelos colegas. Eles querem beijá-la e abraçá-la. Por ter o desenvolvimento cognitivo muito à frente, ela ajuda os coleguinhas, corrige quando alguém fala errado;, conta a professora Gazielle Wandila Pereira.

Os pais de Rebeca descobriram a necessidade especial da filha aos sete meses de gravidez. A cesariana estava marcada para acontecer em um mês. Mas Rebeca, que não deixa nada para depois, quis nascer logo. ;Desde os seis meses, ela queria nascer de qualquer jeito. Fizemos uma ecografia e detectaram uma possível má-formação no fêmur. Íamos confirmar o problema no exame seguinte, mas não deu tempo;, lembra a mãe, a dona de casa Corina Rejane Silva de Andrade, 30 anos. A menina veio ao mundo com mais de 70 fraturas pelo corpo ;O médico falava que ela nem sairia hospital. Depois de 17 dias de internação, fomos para casa.;

Gênio forte
A mãe e o pai de Rebeca, o pastor Alexsandro Luis da Silva, 32 anos, tiveram de aprender a conviver com as limitações da filha. Pegá-la no colo, dar banho, tudo era mais difícil. Rebeca tem dois irmãos, Felipe, 8, e Natália, 13. ;Ela consegue até bater neles;, relata. Cada minuto do dia da menina é mais do que especial. ;Aprendi que devemos tratá-la com verdade. Ela me perguntou um dia desses se ia poder andar. Eu a olhei nos olhos e disse: ;Eu não sei;. Comecei a chorar. Ela me abraçou e disse: ;Mamãe, eu não vou mais perguntar isso, vou só pedir para Papai do céu;. A Rebeca é assim;, conta Corina.

A garotinha é vaidosa. Gosta de passar sombra nos olhos, de pintar o sorriso bonito com batom e de fazer as unhas. Gosta também de desembaraçar os cabelos pretos e longos, que frequentemente prende com dois laços, no estilo maria-chiquinha.

Rebeca aprendeu, por conta própria, várias palavras em inglês. Não importa a época do ano, anda por aí desejando: ;happy easter (feliz Páscoa); e ;Merry Christmas (feliz Natal); para todo mundo. Quando alguém olha para ela com pena, Rebeca reconhece. Um dia desses, uma mulher zombou dela no supermercado. ;Pai, ela riu de mim.; ;Não, minha filha, ela riu para você;, tentou amenizar Alexsandro. ;Eu sei quando alguém ri de mim e quando é para mim;, disse.

Bailarina
Bianca é mais introspectiva. Nem com muita insistência faz a ;dança da bailarina;, sua preferida, para quem ela acaba de conhecer. Assim como Rebeca, a menina participa de todas as atividades em sala de aula. As duas são tratadas sem regalias e estudam em salas diferentes. Uma vai à escola de manhã e a outra, à tarde. Isso porque a escola tem apenas uma monitora, Maria Lúcia de Almeida, que presta atendimento individualizado. ;Elas precisam de cuidado em tempo integral. Sem a monitora, o trabalho da professora fica comprometido. Então, cada uma fica em um turno;, explica a cuidadosa diretora do CEI 210, Lidi Ane de Oliveira.

Às vezes, elas se encontram e brincam juntas. Competem para ver quem monta um quebra-cabeça mais rápido. Os colegas querem beijar e abraçar as meninas. No começo, cada aproximação era tensa. Hoje, os outros alunos e as garotas já aprenderam que o carinho deve ser feito com delicadeza para não machucá-las. A avó de Bianca, Maria Lúcia, sonha em ver a neta mocinha. ;Mas eu evito ficar pensando nisso. Um dia de cada vez.;

Há oito meses, Rebeca não fraturava um osso sequer. Na última sexta-feira, aparentemente trincou uma costela. Estava no colo da mãe e, depois de um movimento leve, desencadeou a dor. Ela não pode engessar nenhuma parte do corpo, pois não suportaria o peso do gesso. Aguenta cada tormento sem fazer alarde, com um choro abafado de menina crescida. As duas seguem com seus ossos frágeis, driblando cada armadilha do mundo, lugar perigoso no qual elas não abrem mão de estar. O corpo se quebra como vidro, mas a vontade de viver é suprema.


Para saber mais
Causas e tratamento

O nome Osteogenesis imperfecta vem do latim e quer dizer: criação imperfeita dos ossos. A OI é uma doença genética relativamente rara. Atinge, em média, um a cada 21 mil nascimentos. Uma deficiência na produção de colágeno ; proteína que dá consistência e resistência, principalmente aos ossos, mas também à pele, às veias e a outros tecidos do corpo ; do organismo é a responsável pelas características da enfermidade.

Os ossos dos portadores da síndrome se quebram com facilidade, mas existem ainda as fraturas espontâneas, que ocorrem sem nenhuma causa aparente. Em consequência das fraturas, pode haver deformação do tecido.

A OI tem três níveis de gravidade. Em casos extremos, a criança pode não suportar o esforço do parto e morrer. No nível mais elevado, é comum surgirem problemas cardíacos ou pulmonares. Os tratamentos mais indicados são a fisioterapia comum e a respiratória, além do uso regular de medicação.
A doença pode causar surdez ea estatura dos portadores, geralmente, é baixa. Estima-se que no Brasil existam pelo menos 12 mil portadores da enfermidade.