Aprovado no vestibular de engenharia mecânica da Universidade de Brasília (UnB) em 1970, o paulista-brasiliense Iraê Sassi foi impedido de frequentar as aulas. O então vice-reitor José Carlos Azevedo o chamou de agitador e subversivo e barrou sua entrada na instituição. Quarenta anos mais tarde, o ex-calouro conquistou o direito a uma vaga no curso de letras/tradução, por decisão unânime da Câmara de Ensino e Graduação, em reunião ocorrida na terça-feira passada.
Tudo o que viveu nas últimas quatro décadas não alterou o gosto de Iraê Sassi pela engenharia mecânica, mas criou nele uma nova vocação, os idiomas. Daí ter mudado o curso, que deve começar a frequentar no início do próximo semestre letivo. Até lá, Iraê continuará saboreando duas sucessivas vitórias. A primeira, no ano passado, quando foi anistiado e conseguiu pensão pelos dois empregos públicos, um no Banco do Brasil e outro na Petroquímica, que teve que abandonar por conta da perseguição política, e agora, a reintegração à UnB.
;Estou muito feliz, porque grande parte dos ideais que tínhamos se materializaram: temos hoje um país democrático e socialmente mais justo. Não foi com o imediatismo que esperávamos na juventude, mas muitas coisas boas ocorreram no Brasil;, diz Iraê, que tem esse nome porque sua mãe, Moema, funcionária da Fundação Nacional do Índio, homenageou os cinco filhos com sua dedicação à causa indígena. Os outros quatro se chamam Abaetê, Cací, Inaê e Iberê. Nos primeiros anos de escola, o menino Iraê Sassi ganhou o apelido de Iraê Saci Pererê.
A família do novo calouro da UnB fazia mesmo escolhas singulares. O pai, Mário Sassi, deixou a primeira mulher para se juntar a Tia Neiva, a líder religiosa e carismática que fundou, com o novo companheiro, o Vale do Amanhecer. Tanto o pai quanto a mãe e a madrasta de Iraê estão mortos.
Depois de muito se aventurar pela nova capital ilimitada ; ;a gente caçava, pescava, nadava, vivíamos soltos no cerrado; ;, Iraê se vinculou ao movimento estudantil secundarista, o mais aguerrido da capital modernista. O jovem militante passou pelas mais importantes escolas públicas de Brasília, o Caseb, o Ciem e o Elefante Branco. Nelas, participou intensamente do movimento estudantil. ;Uma vez, ocupamos o Colégio Agrícola, depois o Elefante Branco. Chegamos a hastear a bandeira vermelha russa em cima da caixa d;água do Ciem durante as comemorações da revolução (de 1917);. A essa altura, Iraê já fazia parte do Partido Operário Revolucionário Trotskista Posadista ; PORT-P, inspirado no ideólogo argentino J. Posadas.
Surpresa
Com a vitória no vestibular, aos 19 anos, Iraê foi surpreendido pela decisão da UnB de não aceitar a matrícula, dele e as de outros três militantes do movimento secundarista. Depois de vários dias de chá de cadeira para tentar ser recebido pelo vice-reitor, finalmente Azevedo atendeu os quatro estudantes aprovados no vestibular que estavam impedidos de estudar. ;Sei muito bem o que vocês fizeram no movimento secundarista. Vocês estão entrando na minha universidade para agitar e eu não vou permitir isso;, disse aos quatro aprovados o capitão de mar e guerra, mais tarde reitor da UnB.
Os quatro entraram com pedido de liminar na Justiça, mas um juiz de primeira instância considerou que eles eram nocivos à vida universitária. O reitor do período, Caio Benjamin Dias, argumentava que a UnB não poderia ;acolher em seu seio, numa posição cômoda, porém masoquista (;) estudantes hostis à ordem, à disciplina e à própria comunidade universitária.; Um ano depois, o ministro do Tribunal Federal de Recursos (TRF) Armando Rolemberg acolheu o pedido dos aprovados. Iraê Sassi pôde então se matricular na universidade, onde recebeu o número 70/05695.
Foi muito curto, porém, o período letivo do aluno de engenharia mecânica. Uma investida feroz da polícia política prendeu os principais dirigentes do PORT-P, e matou um deles. Iraê deixou a universidade e se mudou para São Paulo com a tarefa de ajudar a recompor as atividades políticas do partido e, em especial, a garantir a circulação do jornal Frente Operária, principal veículo de divulgação dos ideais partidários. Seria um período de perigosa clandestinidade.
Enquanto, em São Paulo, Iraê tentava despistar a repressão, ela agia silenciosamente contra ele em Brasília. Em agosto de 1974, a universidade decidiu pelo jubilamento do aluno, alegando que ele em quatro anos havia se matriculado em apenas uma disciplina. Naquelas condições extremas, em que o país vivia seu mais terrível período de ditadura militar, Iraê nada pôde fazer. Nos 26 anos seguintes, ele viveu para o partido. Percorreu vários países latino-americanos e morou 19 anos na Itália, sempre a serviço do PORT-P.
De volta a Brasília, em 2000, Iraê Sassi decidiu requerer a anistia política. Conseguiu a pensão ; ;é um ressarcimento discreto, que não me permite cobrir o orçamento familiar;. Os anos de atividade política aprimoraram a sua fluência em inglês e o fizeram aprender espanhol e italiano em condições de tradução, atividade com a qual completa a renda doméstica ;dele, da mulher e de dois filhos adolescentes.
Que José Carlos Azevedo, morto em fevereiro deste ano, não saiba, mas Iraê Sassi voltará à UnB não apenas como estudante, mas como militante político, do mesmo modo que há 40 anos. Coerência e resistência parece que nunca lhe faltaram.
Documentos tornaram o processo simples
A relatora do processo que reintegrou Iraê Sassi à UnB, Elaine Maria de Oliveira Alves, disse que foi ;muito simples; a decisão unânime da Câmara de Ensino e Graduação. ;O grande segredo para essa avaliação foi que a Secretaria de Assuntos Acadêmicos conseguiu recuperar documentos microfilmados de 40 anos atrás, e assim pudemos conferir que, de fato, a universidade se recusou durante dois anos a fazer a matrícula desse e de outros três alunos;. Os mesmos documentos comprovaram que o jubilamento baseou-se em argumentos falsos. Ao contrário do que estava escrito no processo, Iraê Sassi não se matriculou em quatro semestres sucessivos. ;Ficou claro que, mesmo tendo sido obrigada a matricular os alunos, a universidade dificultou ao máximo a permanência dos alunos nas atividades discentes.;