Passava das 11h da última segunda-feira. A enfermeira Vilma Lobo, de 47 anos, cuidava de uma paciente em um dos boxes da emergência do Hospital Regional de Ceilândia (HRC), onde trabalha desde a inauguração da unidade de saúde, em 1981. Ao ouvir gritos e perceber um movimento estranho nos corredores, ela se espantou. Logo em seguida, uma colega chegou com a notícia: ;Tem uma mulher que coletou o próprio sangue, está dizendo que tem Aids e que vai infectar as pessoas;.
Como supervisora do setor, Vilma foi ver, de perto, o que acontecia. No caminho até a sala de medicação, onde acontecia o tumulto, as colegas contaram rapidamente o motivo da fúria da mulher ; cujo nome de batismo é Osmair Miliano Pinto, de 28 anos ; que é conhecida como Maíra. O travesti chegou ao hospital em uma ambulância do Corpo de Bombeiros, acompanhando um paciente que sofrera uma crise convulsiva, mas já havia recebido os primeiros socorros e aguardava atendimento médico.
Vilma foi informada de que, naquele momento, não havia médico disponível. ;Fui tentar resolver o conflito, pedir calma. Como a pressão da paciente já tinha sido aferida e ela não estava com febre, era preciso só um pouco de paciência;, contou a enfermeira, que recebeu o Correio na manhã de ontem para uma conversa que durou pouco mais de uma hora. ;Entendo a revolta, mas eu não tinha culpa. Sofri as consequências de algo que eu não tinha culpa;, repetia, entre lágrimas.
A continuação dessa história, o Brasil inteiro leu nos jornais e viu na TV ao longo da semana. Assim que Vilma se aproximou do travesti, ele se impôs: ;É você que não quer atender?;. Não houve tempo de a enfermeira responder. Osmair, que é soropositivo, pegou uma seringa com a qual havia coletado o próprio sangue e o injetou na mão esquerda da enfermeira-chefe do pronto-socorro. Foram três picadas. ;Agora, você é a mais nova integrante da turma, colega;, debochou Osmair, depois do ataque.
Uma outra enfermeira tentou conter o agressor e acabou levando uma mordida no braço. Pacientes que também aguardavam atendimento ajudaram a imobilizar o travesti. Enquanto a polícia(1) não chegava ao hospital, Vilma se desesperava para tomar os primeiros comprimidos. O jaleco branco ficou sujo de sangue. A mão atingida pela seringa inchou imediatamente. ;Tentei tirar a mão na hora que vi a seringa, mas ele me segurou com muita força. Senti a dor da agulha, o sangue entrando;, relembrou.
Antes de se deparar com a servidora do HRC, o travesti, transtornado, gritava que ;furaria; a primeira pessoa vestida de branco que encontrasse pela frente. ;Essa pessoa fui eu. Ele falava da seringa, mas ninguém tinha visto nada ainda porque ele a escondeu, como se fosse uma arma. Pensei que pudesse ser um blefe;, comentou a vítima, que chorou durante toda a conversa. ;A gente perde os sentidos, a força, não quer acreditar. Uma covardia tirou o meu chão.;
Vilma só terá certeza se foi infectada pelo vírus HIV entre 60 e 90 dias. Até lá, tomará cinco comprimidos e uma injeção a cada 12 horas na tentativa de barrar a contaminação. A medicação tem provocado fortes dores de cabeça, tontura, vômito, diarreia e insônia na enfermeira, que é casada e mãe de três filhos. O caçula, de 9 anos, não entende direito o que aconteceu. O mais velho, de 25, está revoltado, como o restante da família e dos amigos. ;Tem um vazio dentro de mim que não consigo explicar;, revela.
Desde a segunda-feira, Vilma dorme muito mal. Acorda com pesadelos, escuta a voz do travesti e tem a impressão de que alguma agulha a fere de novo na mão esquerda. ;Vai ser difícil esquecer. Esperança de que vai dar tudo certo, a gente tem. Mas é claro que tenho medo de morrer. No fundo, queria mesmo era escutar que isso não é verdade;, comentou a supervisora, que, ao tirar os óculos escuros, revela um olhar abatido.
Até o resultado de todos os exames ficar pronto, a enfermeira sabe que, por mais que tente se tranquilizar, enfrentará dias de muita ansiedade. ;Minha família está sofrendo junto. Quando pego os medicamentos para tomar, todos ficam me olhando, deitam na cama comigo. Eu tenho que ser forte, mostrar que estou bem;, disse, enxugando as lágrimas. ;Sou conhecida por ser guerreira, não vou desistir.;
Antes de terminar a conversa, Vilma relembrou uma outra agressão sofrida há três meses, quando um paciente deu um tapa no seu rosto porque, assim como na segunda-feira passada, não havia médico para atendê-lo. ;Nós, enfermeiras(2), somos o escudo da emergência, mas não somos culpadas pela falha do sistema. Só porque estamos de branco, na linha de frente, temos de pagar esse preço altíssimo? Nossa função é cuidar das pessoas, não resolver o problema;, desabafou.
1 - Prisão
A ocorrência foi registrada na 15; Delegacia de Polícia (Ceilândia). Osmair, preso em flagrante, responderá por duas tentativas de homicídio qualificado, crime previsto no Código Penal, cuja pena varia de 12 a 30 anos de prisão. Ele segue detido no Departamento de Polícia Especializado.
2 - Protesto
O caso da última segunda-feira provocou várias manifestações dos funcionários do Hospital Regional de Ceilândia, cuja emergência recebe cerca de mil pessoas todos os dias. Na quarta-feira, os servidores suspenderam o trabalho para reclamar da falta de segurança no local.