Com uma canetinha preta, o arquiteto Oscar Niemeyer esboça no papel branco o que será uma obra de arte. Idealiza as curvas soltas no ar, os pingos de concreto tocando o chão e simples traços que se encaixam perfeitamente. Para leigos, os trabalhos parecem todos iguais: cúpulas, arcos e formas tortuosas. Mas são os pequenos detalhes que garantem a diferença entre elas. Amigos próximos a Niemeyer acreditam que não é possível definir em poucas palavras a produção do modernista de 102 anos. ;Olhando para a obra, você vê a assinatura dele. É como uma música: se você ouve Chico Buarque, você sabe que é Chico Buarque;, comparou o arquiteto Jair Valera, que trabalha no escritório de Niemeyer, no Rio de Janeiro. O autor dos trabalhos é ainda mais direto ao fazer essa distinção: as obras não têm nada a ver uma com a outra.
Aos olhos de um brasiliense, o Centro Cultural Internacional Niemeyer, em Avilés, na Espanha, lembra muito o Museu Nacional de Brasília, inaugurado em 2006, na Esplanada dos Ministérios. A grande cúpula branca, as rampas suspensas e a dimensão do prédio parecem ter surgido da mesma ideia. Mas o responsável pelos traços exóticos é duro na análise da própria produção: elas não se parecem em nada. ;Não é porque são duas cúpulas, que elas têm de ser iguais. O cálculo do Teatro Nacional, da Espanha, é bem mais complicado, foi mais difícil de fazer;, explicou.
Surpresa
Assim como o Complexo Cultural de Brasília, o espaço espanhol é amplo e conta com dois prédios diferentes para abrigar auditórios, museus e bibliotecas. De qualquer ponto é possível observar a paisagem da cidade. ;Eu queria que ficasse limpo, com apenas dois prédios e o destaque para a arquitetura. O importante na arquitetura é a surpresa, é fazer a coisa diferente. Cada um faz o seu concreto armado, a sua arquitetura. E eu faço a minha;, discursou Niemeyer, no lançamento da única obra espanhola com a sua assinatura. A cúpula de Avilés conta com uma sobreloja recortada em formatos quadrangulares aberta para o salão de baixo, criando assim dois ambientes. ;Esta cúpula é mais complexa, estudei com muito cuidado esse projeto. Está despertando a curiosidade do pessoal daquela área. Estou muito entusiasmado;, contou Niemeyer em entrevista ao Correio.
Em Brasília, a cúpula monumental localizada entre a Catedral e a Biblioteca Nacional conta também com um mezanino e uma rampa externa que liga o primeiro ao segundo andar. No térreo fica o auditório equipado para a realização de palestras, shows e apresentações artísticas. Já no espaço á beira-mar de Niterói, Oscar Niemeyer usou e abusou de curvas. Fantasiou. A maior cúpula abrigará um auditório e, logo ao lado, será instalada a Fundação Oscar Niemeyer. Outra estrutura arredondada flutua entre o concreto armado da Catedral idealizada pelo arquiteto em formado de uma pombinha. ;A cúpula fica ali no meio, solta no ar. É uma estrutura que jamais será vista em outro lugar;, orgulha-se. ;As curvas feitas por Niemeyer variam dependendo do programa. Mas, como ele tem feito muitos centros culturais, é quase sempre o mesmo tipo de obra;, explica Jair. As estruturas têm representações diferentes, dependendo de onde sejam instaladas: magnitude, religiosidade ou poder como, por exemplo, as do Congresso Nacional.
Ondas e arcos também são característicos na produção de Niemeyer. O formato ondulado da Universidade de Brasília (UnB) batizou o principal corredor do centro de ensino: o minhocão. O formato dos prédios da sede do Partido Comunista francês e do Tribunal Superior Eleitoral brasileiro (TSE) têm a mesma forma. Mas, entre todos esses, o que possui as ondas mais destacadas é o Copan, no coração da capital paulista. O edifício residencial virou ponto turístico. Volta e meia, pessoas param em frente ao prédio para registrar através de lentes cada detalhe da obra arquitetônica. Os arcos também estão presentes em monumentos e edifícios governamentais, como é o caso do Palácio da Justiça e do Itamaraty, localizados um de frente para o outro ao fim da Esplanada dos Ministérios. Niemeyer considera a arquitetura dos dois prédios simples e elegante. ;Seria como um momento de pausa e reflexão para melhor compreenderem a arquitetura mais livre que prefiro;, disse.
Os traços chamam atenção em qualquer lugar do mundo. E, hoje, muitos países querem contar com um registro do arquiteto modernista. O Palácio do Planalto, primeira obra dele em Brasília, ganhou pilastras tão bem feitas que, mais tarde, foram copiadas nos Estados Unidos, na Grécia e na Líbia. ;As cópias não me incomodavam, eu as aceitava satisfeito. Era a prova de que o meu trabalho agradava a muita gente;. Brasília é o período de maior produção de Oscar Niemeyer. Ele construiu o Palácio do Planalto e o Supremo Tribunal Federal, um de frente para o outro com uma semelhança: os dois apenas tocam o chão. Anos depois, veio a era dos prédios espelhados, como a Procuradoria Geral da República e os anexos de alguns tribunais.
Na revista de arte, cultura e arquitetura de Oscar Niemeyer, intitulada Nosso caminho, lançada em 1; de junho último, o arquiteto lembra com carinho da primeira viagem que fez ao cerrado, ao local onde seria erguida Brasília. O então ministro da Guerra, general Lott, perguntou, preocupado, ao arquiteto: ;Os prédios do Exército serão modernos ou clássicos?;. E ele respondeu: ;Numa guerra, o senhor prefere armas modernas ou clássicas?;. E o general sorriu. A partir de então, Niemeyer desenhou mais prédios para ocupar a cidade onde o céu parece ser maior e que, mais tarde, virariam referências arquitetônicas no Brasil e no mundo.
PARA SABER MAIS
Centenário e produtivo
Com pouco mais de 100 anos de vida, o arquiteto Oscar Niemeyer apresenta saúde invejável e muita disposição para trabalhar ; mesmo já tendo sido internado algumas vezes nos últimos dois anos. O primeiro trabalho assinado pelo arquiteto foi Obra do berço, em 1937, no bairro da Lagoa, no Rio de Janeiro. Pouco tempo depois, ele desenhou os traços do Ministério da Saúde e da Educação, também no estado fluminense. Desde então, não era adepto da arquitetura comercial. Por isso, mesmo sem dinheiro, decidiu trabalhar sem remuneração no escritório de Lucio Costa, com quem trabalhou na construção de Brasília. Hoje, ele é casado com Vera Lúcia Cabreira, 60 anos. Tem uma filha, Anna Maria Niemeyer, cinco netos, 13 bisnetos e quatro trinetos. Ainda em 2009, ele apresentou os desenhos da Torre de TV Digital, que está sendo construída em Sobradinho e apresenta o formato de uma flor do cerrado. Enquanto o projeto estava sendo elaborado, ele ia todos os dias ao escritório, em Copacabana, no Rio de Janeiro, para dar continuidade ao projeto Caminho de Niemeyer e estruturou ainda a reforma do Clube do Choro, em Brasília.
De graça
O Partido Comunista Francês foi fundado em 1920 e compôs o governo daquele país em 1945, 1981 e 1997. Projetado pelo arquiteto Oscar Niemeyer, o edifício-sede do partido ganhou forma em 1966. Mas só foi concluído em 1980. À época, ele nada cobrou pelo projeto. Os traços do prédio do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em Brasília, seguem as mesmas características, saiu pelo valor de R$ 5,9 milhões.