Com quatro dias de nascido, a família o levou ao melhor pediatra da cidade, em Barreiras, interior da Bahia. Para pagar a consulta, família e amigos se cotizaram. E lá se foram a mãe diarista doméstica e o pai pedreiro ver o que aquele renomado homem de jaleco branco teria a dizer. O médico, ao desenrolar a manta que cobria o bebê, sentenciou: ;Olha só pra isso. Essa criança tem problema no corpo todo. Vai ser um problema pra vida inteira;. Não contente, mirou os pais e ainda emendou: ;Vocês são tão jovens, saudáveis, como podem ter tido um filho assim?;
E receitou um remédio para o filho daquela mulher. ;Assim que saí do consultório, rasguei aquele papel. Eu só conseguia chorar. Aquele médico me disse que seria melhor que meu filho não tivesse nascido. Ele pegou meu filho com nojo;, diz a mãe, ainda emocionada. Quinze anos depois, o menino que o homem de jaleco branco disse que não daria para nada virou escritor e pintor.
Sim, Jeferson Ramos da Cruz agora pinta a vida com cores de quem apostou em viver. A mesma vida que um dia alguém lhe disse que ele não teria. Descobre paisagens, recria o que vê e inventa as suas próprias. Sentado numa cadeira de rodas, sem mexer braços e pernas, ele usa a boca para brincar com os pincéis. Duas ou três horas depois, a tela está pronta. E ele se extasia com o que é capaz de fazer. Eis a sua obra de arte.
Desde novembro, Jeferson tem frequentado aulas de pintura. E encanta a professora, que, voluntariamente, o ensina técnicas de perspectivas em paisagens (noção de perto e longe, sombra e luz). ;Na verdade, a gente não ensina nada a ninguém. A pessoa já nasce com o dom. Ele desenvolveu muito rapidamente. É inteligente demais;, elogia Margarida Lopes Fróes, pernambucana de 57 anos, quatro filhos, seis netos.
Duas vezes por semana, a professora abnegada abre as portas para aquele menino que chega pilotando sua cadeiras de rodas motorizada. E lá, por duas horas, ela lhe mostra um mundo de magia e cores. Com a boca, ele faz tinta crua e tela branca virarem arte. Desenha o que vê e depois pinta. Noutras, cria seus rabiscos. Ela se emociona. Ele a agradece com um sorriso do tamanho da sua felicidade. Cleide Figueiredo Ramos, 34 anos, a mãe, não cabe em si: ;E aquele médico disse que meu filho seria um peso na minha vida;.
A história de Jeferson foi contada com exclusividade pelo Correio em abril de 2008. Naquela época, ele havia acabado de colocar o ponto final no último capítulo do livro que levara seis anos para escrever. A professora Crislei Maria Morais, hoje com 36 anos, o incentivou desde o começo. Aos quatro anos, ela o conheceu numa escola de ensino especial, em Planaltina. ;Quando eu vi o Jeferson pela primeira vez, percebi que ele era de fato diferente. Os olhinhos dele diziam: ;Eu posso, eu quero;. Eu apostei nele;.
Crislei dava aula de educação física para meninos e meninas com necessidades especiais. ;Ele se arrastava, mas tentava fazer as atividades;, conta. E, um dia, ele a surpreendeu. Pediu que ela o ensinasse a escrever. Como? Já que Jeferson não mexia os braços nem as mãos? Mas ela mesma encontrou a solução: ;Ele escreveria de qualquer forma, da forma que pudesse;.
Páginas de verdade
Assim se fez. Jeferson começou a escrever com a boca. No começo foi complicado. Ele se machucava com o lápis. Fez calos. Sangrou. Mas nunca desistiu. Do ensino especial, ele foi matriculado no regular. E nunca mais parou de escrever. A professora teve uma grande ideia. Por que ele não escrevia um livro contando sua história? Jeferson topou. E foram longos seis anos de rabiscos cheios de vida e verdade e algumas lágrimas.
Os rascunhos de Minha vida em rodas me fez capaz de voar e sonhar, escritos em letra de forma, estavam prontos. Como publicá-lo? Em 24 de abril de 2008, o Correio revelou a comovente história de Jeferson. No dia seguinte, veio a ajuda. O senador Cristovam Buarque e a editora Thesaurus entraram na luta em favor do menino.
A obra ficou pronta. Em 22 de dezembro, o livro virou realidade. Com direito a noite de autógrafo e coquetel, no Carpie Diem. Ainda nessa época, ele ganhou, de um morador da Asa Norte, a tão sonhada cadeira de rodas motorizada, que lhe deu asas e o fez voar com suas pernas emprestadas. A história de Jeferson correu o país. A apresentadora Xuxa o chamou para ir ao programa dela. E deu a ele, a um irmão e à mãe, seis dias de passeios no Rio de Janeiro. Jeferson conheceu o mar.
A venda dos mil exemplares do livro foi toda revestida para o escritor e suas necessidades básicas. Nas 48 páginas, ele contou o nascimento, a descrença do primeiro médico consultado e a ajuda de um segundo, desta vez um ortopedista, que se dispôs a ajudá-lo. E fez o que homens de jaleco branco deveriam fazer: acreditaram. Com 20 dias de nascido, ele conseguiu uma vaga no Hospital Sarah. E aqui o laudo definitivo.
Jeferson era portador de artrogripose múltipla ; doença congênita caraterizada por várias deformidades rígidas nas articulações. Ele nunca andaria nem mexeria as mãos e braços. Começou o tratamento de fisioterapia. Quinze anos depois, ainda está numa cadeira de rodas. Não anda nem não consegue tomar água com as próprias mãos. Depende da família ; pai, mãe e três irmãos ; para todas as necessidades. Mas nunca esteve tão feliz. E, paradoxalmente, tão independente.
Na manhã de ontem, ele pintava mais uma tela, sob o olhar cuidadoso da professora. Compenetrado, ele admite: ;Quando tô pintando, o pensamento fica só naquilo que tô fazendo. Nada mais tem vez;. Cleide, embasbacada. comprara: ;Ele já escreveu um livro e agora, pintando, é como se ele desse os primeiros passos rumo a uma corrida;. Jeferson escuta a mãe falar. Ri sorriso de felicidade e diz: ;Acho que gosto mais de pintar do que escrever. Me solto mais...;
Doação
Na casa humilde onde mora no Vale do Amanhecer, em Planaltina, a família católica luta pela sobrevivência. Pintar, para Jeferson, é luxo que vem da doação alheia. Tintas, telas, solventes, tudo chega às suas mãos por meio de pessoas que, às vezes, nem o conhecem, mas sabem da sua história. ;Se não fosse assim, não teria como ele ir adiante;, diz a professora Margarida, que o ajuda como pode.
Vendo as obras do artista que pinta com a boca, a mulher que o ensina sem nada cobrar, admite: ;Pra mim, a luta dele é um grande lição de vida. Vejo o desempenho, o interesse. Tem gente que tem braços e pernas normais e não consegue fazer nada. Ele, com todas as limitações, que são sérias. consegue. Superação verdadeira é isso;.
Jeferson, que cursa a 8; série, tem planos. Quer pintar mais e fazer uma exposição. E pretende fazer a faculdade de artes. A diarista Cleide não se cansa de elogiar o filho: ;Ele me surpreende. Quando eu tô triste é ele quem me coloca pra cima, me deixa alegre;. De gel no cabelo, brinco na orelha esquerda (diz que arrumou uma namoradinha no carnaval), o adolescente que não anda nem mexe braços ou mãos virou pintor.
Pinta o que sente, da forma que concebe a vida. Busca paisagens bucólicas, coisas que lhe agradam. É o mundo sob sua ótica. A visão de quem teve que descobrir a imperfeição da vida e dos seres. E, ao se deparar com isso, tornou-se mais vivo e mais forte. Jeferson aprendeu, desde sempre, que a vida é feita de adaptações. Ele encontrou a sua.
Causa boa - Quem puder ajudar Jeferson com material
de pintura ; tela, tinta, pincel, solvente ; pode ligar para Cleide, a mãe: 3308-3643 ou 9128-8849