Jornal Correio Braziliense

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Traficantes viram polícia no Itapoã e cobram de comerciantes para evitar assaltos

Donos de estabelecimentos garantem desembolsar até R$ 500 por mês a traficantes para não serem roubados. No sábado, bandido que cobrava propina morreu. Polícia Civil investiga denúncia

Abrir o comércio e não ser assaltado custa até R$ 500 no Itapoã, cidade que é uma expansão do Paranoá. Apesar de a segurança pública ser um dever do Estado e um direito do cidadão, no setor habitacional carente, onde vivem 100 mil pessoas, são os traficantes e um policial militar (à paisana) que fazem a ;proteção; de estabelecimentos comerciais e ganham dos empresários para isso. O ;serviço; surgiu para suprir uma carência deixada pelo número insuficiente de PMs destacados para o local, que conta apenas com dois postos comunitários de segurança. Além de o contingente ser de apenas quatro militares por turno, nas unidades também não há carro da corporação para o deslocamento.

Depois de ser assaltado 10 vezes em quatro anos, o dono de um estabelecimento comercial na QL 8 ; a chamada Rua da Morte, que divide os setores Itapoã II e Fazendinha, onde ocorreram vários assassinatos, sendo o último no sábado passado ; resolveu ceder aos assédios de um traficante da região e contratou o ;serviço de segurança; dele. ;Aqui não existe polícia. Desde quando paguei o traficante nunca mais fui assaltado;, justificou o filho do proprietário, que pediu para não ser identificado. Ao ser questionado por que ele não denunciou a extorsão(1) à polícia, o comerciante foi categórico: ;Porque tenho medo de morrer;.

Desde fevereiro, o dono do comércio paga R$ 500 mensais a criminosos para não ser assaltado. Além de roubos, na rua, já ocorreram diversos assassinatos. Pelas contas do homem extorquido por bandidos, morreram 10 pessoas lá em menos de quatro anos. Todas as vítimas tinham um suposto envolvimento com o tráfico de drogas. No sábado último, Roberto Pereira Marinho, 24 anos, conhecido como Pará, acabou atingido com uma rajada de quatro tiros na região. A polícia acredita que o motivo tenha sido um acerto de contas.

O irmão do dono do comércio da QL 8, que tem uma modesta mercearia na QL 5, pagava R$ 10 por dia a Pará. O proprietário ; que também pediu para não ser identificado ; só parou de pagar porque o o rapaz, que tinha passagem por tráfico, morreu. ;Ele (Pará) entrava aqui cedo e, sem falar nada, rapelava (levava) o dinheiro do caixa. Quando não tinha, levava mercadoria. Eu não podia reclamar porque senão seria assaltado;, afirmou o homem de 47 anos. O comerciante classificou a atitude do bandido como ;humilhante;. ;Ele chegava aqui e fazia isso na frente dos meus filhos e da minha mulher;, ressaltou.

Os mesmos traficantes tentaram corromper o dono de um outro comércio na QL 4. Mas ele recusou a oferta dos criminosos. ;Tem um vizinho meu que é policial do Paranoá e, sempre que ele está de plantão, passa aqui na frente para ver se está tudo bem;, afirmou o homem de 44 anos.

Um dos postos comunitários de segurança fica na entrada no setor habitacional, que surgiu de uma invasão. Na outra extremidade, fica o segundo, no local chamado Fazendinha. O comércio onde estão localizados os três estabelecimentos fica a 1,5km de distância de uma das unidades. ;Eles (PMs) não têm carro. Então, raramente, a gente vê uma viatura rondando aqui;, disse um comerciante, que pediu para não se identificar. Em casos de urgência, os policiais pedem apoio à 10; Companhia da corporação, que fica no centro do Paranoá. A comunidade reclama que o número de policiais é insuficiente.

Silêncio
O chefe da 6; Delegacia de Polícia (Paranoá), Pablo Aguiar, promete investigar a denúncia do Correio sobre a extorsão imposta pelos traficantes aos donos de comércio. O delegado avisa que os próprios comerciantes podem ser indiciados por associação ao tráfico. ;Se eles estão pagando aos bandidos, estão cometendo um crime e terão de responder;, disse. No fim da tarde de ontem, o policial intimou os três comerciantes e garantiu que eles negaram ter desembolsado a propina. ;Eu fui bem sereno com eles. Pedi para que abrissem o seu coração, mas todos negaram;, afirmou Aguiar.

Não é difícil entender por que a chamada lei do silêncio impera entre os comerciantes do Itapoã. Em abril último, um jovem, filho do estabelecimento da ;Rua da Morte;, denunciou o abuso dos traficantes e acabou assassinado. ;Ele chamou a televisão e acabou morto por isso;, afirmou o tio da vítima, um homem de 47 anos.

Crime
Extorsão tem a seguinte definição no Código Penal: constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, e com o intuito de obter para si ou para outrem indevida vantagem econômica, a fazer, tolerar que se faça ou deixar fazer alguma coisa. A pena prevista é de quatro a 10 anos de cadeia.

"Aqui não existe polícia. Desde quando paguei o traficante nunca mais fui assaltado"
Filho do dono de um comércio de Itapoã



Proteção feita por policial
Um PM da 10; Companhia de Polícia Militar Independente (Paranoá) cobra até R$ 5 por dia para proteger os estabelecimentos comerciais do Itapoã. ;Da quadra 303 até a 378 do Del Lago, é tudo minha (sic);, garantiu o sargento Angerlei Berger. Ele afirmou, ainda, que cuida da segurança de 50 estabelecimentos. Katiúscia Aquino de Moraes, 30 anos, é cliente do sargento Berger. Proprietária de um padaria na Quadra na QL 8, ela afirmou que, diariamente, desembolsa R$ 5 para ter o serviço de segurança feito pelo PM e dois homens. ;Não acho errado, não. É muito barato;, disse ela.

O sargento Berger disse que o trabalho é voluntário, uma vez que o valor baixo é considerado por ele como simbólico. Há dois meses, o militar distribuiu um comunicado aos comerciantes divulgando o serviço ; até então, uma novidade na cidade. Na carta, ele oferece desde vigilância em carro e motocicleta até escolta armada a entregadores de mercadoria e vendedores autônomos.

Acompanhado de dois homens, que segundo ele são parceiros no negócio, o militar afirma que, depois que iniciou a vigilância particular, o número de assaltos no comércio local diminuiu. ;Antes, aqui tinha 10 assaltos durante o dia;, afirmou. ;Só eu ando armado. Carrego um celular porque fico sempre em contato com os colegas de corporação, que me dão um suporte;, disse. Para confirmar o que havia garantido, fez questão de levar a equipe de jornalistas a dois estabelecimentos, cujos donos pagam a ele pelo serviço. ;Aqui era cheio de bandido;, garantiu o dono do Supermercado Primo, Antônio Rogério Miranda Alves, 23 anos, situado na Quadra 322 do Del Lago. Laudelino Ribeiro, 37, dono de um sacolão na Quadra 314, também paga. ;Depois que eles começaram a trabalhar, aqui melhorou 100%;, destacou.

No entendimento de Berger, o negócio é legal. ;Até o comandante sabe que eu presto esse tipo de trabalho voluntário;, garante. Em seguida, completa: ;Eu cobro uma taxa que varia de R$ 2 a R$ 3 porque tenho gasto com gasolina, com o pagamento dos dois colegas e, claro, tem sobrar algum troco para mim, porque ninguém trabalha de graça;.

O comandante da 10; CPMind, tenente-coronel Alexandre Sérgio, diz que não autoriza o ;bico;. ;Já o ordenamos que parasse com o serviço e ele pode até ser expulso da corporação por isso;, afirmou Sérgio. Além disso, Berger pode responder criminalmente pelo ato.


O que diz a lei
A lei n; 7.102, de 1983, que dispõe sobre a segurança em comércio, estabelece que o serviço de segurança particular deve ser executado exclusivamente por empresas especializadas. Elas devem ser cadastradas pela Polícia Federal. Se o vigilante em atividade ilegal reincidir, responde por crime de desobediência (artigo 312 do Código Penal). A pena pode chegar a dois anos de prisão. Além disso, portaria da PM, editada mês passado, proíbe ;bicos; de profissionais da corporação como vigilantes.


Comunicado distribuído pelo PM: serviço chamado de ;segurança social;