Jornal Correio Braziliense

Cidades

Depois de descobrir um câncer nos seios, Maria Lucília da Silva reconstruiu a vida

Além de ter que retirar os seis e enfrentar o desconforto da doença, o casamento acabou. Com dois filhos para criar, ela refez seu modo de viver, inventou uma prótese caseira e descobriu, assim, um jeito de ajudar outras pessoas

Durante um banho, em 1989, Maria Lucília da Silva identificou pequenos caroços nas mamas. Como não havia sentido qualquer tipo de alteração no corpo até então, a cabeleireira pensou que poderia ser um coágulo de leite. Com o passar do tempo, surgiu a preocupação. A insegurança e o medo de ouvir a verdade, porém, a impediram de procurar um médico pelos próximos seis meses. Mas não teve jeito. Quando se deparou com o resultado da biópsia realizada nos nódulos, ela soube que os anos seguintes seriam difíceis. Ela tinha duas opções: acomodar-se no fundo do poço ou dar a volta por cima e enfrentar o câncer de mama(1). Na época com 32 anos e mãe de duas crianças, Lucília escolheu a segunda opção. Desenvolveu, então, uma prótese caseira para mulheres que retiraram a mama, trabalha como voluntária no Hospital de Base e hoje se diz uma amante da vida.

Em menos de um mês, Lucília estava sem os dois seios. ;No início, eu queria ficar livre da doença. Mas é um baque muito forte para a mulher. É uma mutilação.; Durante dois anos ; de 1990 a 1992 ;, ela se redescobriu como mulher e foi obrigada a tomar as rédeas de uma nova vida. A vergonha de usar um vestido ou uma blusa decotada a fez criar uma prótese de espuma para colocar dentro do sutiã. O fim do casamento incentivou a então dona de casa a fazer um curso técnico de cabeleireira e de costura para sustentar os filhos de 11 e 5 anos. ;É difícil demais curar o câncer. Ele tira a sua dignidade, te coloca lá embaixo. Além dos preconceitos que você sofre. É o que tem de mais agressivo para uma mulher;, desabafou.

Os dois filhos foram o maior incentivo para a cura da doença de Lucília. E o grande trampolim para a retomada da vida aconteceu em 1992, quando ela fez a reconstituição dos dois seios. Como na época não havia implante de silicone, ela foi submetida a uma cirurgia que retirava gordura da barriga para implantar no busto. ;Valeu muito a pena. Temos que lutar pela vida, deixar o medo de lado, nos amar e amar a vida: é o nosso bem maior.; Animada e de bem com a vida, Lucília hoje se sente livre para usar blusas justas, com decote, e vestidos variados. E alguns dias de semana ainda trabalha no pequeno salão de beleza improvisado na garagem de casa, no Gama. ;Foi assim que criei meus filhos, construí a minha casa e hoje pago meu carro. Consegui tudo o que eu queria;, orgulha-se.

Quando superou a doença, Lucília decidiu ajudar outras mulheres que passam pelo sofrimento com a doença. Em 2005, aderiu ao voluntariado da Rede Feminina de Combate ao Câncer, do Hospital de Base. O grupo de mulheres trata do câncer de mama e do colo do útero e realiza visitas às pacientes no ambulatório, doa lanches, acolhe e ensina os direitos das cidadãs. Após um ano de trabalho, a cabeleireira percebeu que algumas mulheres carentes também enfrentavam dificuldades como, por exemplo, a demora de conseguir prótese de silicone e para a reconstituição dos seios. ;Na minha época, eu também não tinha condições. Pedi dinheiro emprestado à família e me virei para criar uma prótese para usar um simples vestido;, lembra.

1 - Cuidado após os 35

No Brasil, o câncer de mama é o que mais mata mulheres. A doença é temida por elas devido à alta frequência e os efeitos psicológicos, que afetam a sensualidade e a imagem feminina. O câncer é relativamente raro antes dos 35 anos, mas, acima dessa faixa etária, sua incidência cresce rápida e progressivamente. Os hospitais, no entanto, atendem meninas de até 15 anos com nódulos nas mamas. Quanto mais cedo for detectada a doença, mais eficaz é o tratamento.


"O câncer tira a sua dignidade, coloca lá embaixo. Além dos preconceitos que você sofre. É difícil demais para a mulher"
Maria Lucília da Silva, cabeleireira


Depoimento
Autoestima é tudo

;Eu sempre trabalhei com serviços gerais e demorei para pedir ajuda de um médico com medo de ser prejudicada no trabalho. Há quatro anos, deitada na cama, senti um caroço bem grande. Mas não dei importância e deixei complicar. Um ano depois, eu paguei uma mamografia. Depois do diagnóstico, fui ao Hospital de Base, sentei na sala de espera e esperei ser atendida mesmo sem ter marcado consulta. Isso foi numa sexta-feira e eu me internei na terça seguinte. No meu aniversário, em 12 de junho, eu já estava sem um seio. Nessa época, passei por momentos difíceis na família e em relação à doença, mas encarei tudo com muita garra e com apoio das minhas irmãs e dos meus filhos. O apoio psicológico é muito importante, mesmo assim a gente tem altos e baixos. Eu fiquei muito para baixo, mas não me preocupei com a aparência física ; era minha família que estava com problemas. Hoje, a minha autoestima está bem a cima do que estava. Fiz há pouco tempo a reconstituição e estou em fase de acabamento;.
Evanilda Bolzan de Sousa, 51, Gama, funcionária de serviços gerais


Uma invenção bem bolada

Ainda em 1990, a psicóloga de Lucília a incentivou a criar uma prótese de espuma dentro de casa. ;Eu queria ir em um casamento. Mas sem os seios, eu parecia um homem;, contou. A experiência deu tão certo que a cabeleireira utilizou o bojo de espuma por dois anos, até conseguir a operação de implante dos seios. Com o passar do tempo, ela incrementou a criação. E, há dois anos, levou o acessório à Rede Feminina de Combate ao Câncer. Dessa forma, as mulheres que não têm condições financeiras de fazer a operação de reconstituição ou estão à espera de uma prótese do governo ; demoram de seis meses a um ano para chegar até as mãos da vítima do câncer ; podem se sentir à vontade na hora de se vestir de forma feminina e sensual.

O enchimento é feito com espuma, chumbinho utilizado em pescaria e revestimento de algodão. ;Temos que ver tamanho e o peso do seio da mulher. É tudo adaptado para elas se sentirem confortáveis;, conta Lucília. As próteses são distribuídas de graça às mulheres que passaram pela retirada de uma ou das duas mamas (veja quadro). ;É gratificante ajudar as pessoas que passaram por situação parecida com a minha. Gosto de dar meu testemunho e estimular essas mulheres a enfrentar a doença;, disse. Segundo Lucília, cerca de 3 mil próteses foram produzidas pelo grupo voluntário nos últimos dois anos.


Como funciona
A Rede Feminina de Combate ao Câncer funciona no Corredor 5 do Hospital de Base do Distrito Federal. Além de encontrar as próteses externas da mama, as pessoas encontram produtos à venda. Todo o valor adquirido é revertido para a ajuda às vítimas do câncer de mama e de colo do útero. O grupo também atende pelo telefone 3315-1221.