Carolina Samorano
Especial para o Correio
Os adolescentes que trabalhavam ontem no projeto de restauração do mobiliário que vai decorar o Palácio do Planato tiveram uma surpresa pela manhã. O premiado designer brasileiro Sérgio Rodrigues, das mãos de quem saiu boa parte das peças que hoje eles restauram com todo o cuidado, veio do Rio de Janeiro para ver de perto o trabalho do projeto de oficina do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico (Iphan) do Distrito Federal.
Durante a visita, o designer, 84 anos, percorreu o galpão onde funciona a oficina de marcenaria do Palácio e ficou satisfeito ao ver o resultado do trabalho dos jovens aprendizes: ;Sei que (os móveis) estão em boas mãos. Estão em boas cabeças também, de gente com uma vontade incrível de fazer, vontade de aprender. Fico tranquilo porque eles conseguem captar a mensagem do móvel e traduzir de forma excepcional;.
Eles fazem parte da Oficina de Restauro de Mobiliário Moderno, um projeto do Iphan em parceria com a Presidência da República que vai dar vida nova a móveis que fazem parte da história do design brasilieiro e da construção de Brasília. Quando a segunda turma concluir o curso de restauração, já serão 30 jovens moradores da Estrutural, do Itapoã e do Paranoá habilitados para cuidar de peças que, antes, provavelmente acabariam desvalorizadas num brechó, num leilão e, não raramente, no lixo.
;Não existe o costume de restaurar mobiliário moderno. Se dá muito valor a móveis antigos, mas peças modernas, de artistas brasileiros, acabavam desvalorizadas, vendidas como sucata. Percebemos que eles não só podiam, como deveriam receber mais atenção;, comenta Alfredo Gastal, superintendente do Iphan. ;Esse projeto não é um programa social. Não é o objetivo dele. A ideia é formar profissionais. Quando eles saírem daqui, vão poder encontrar seu lugar no mercado de trabalho, seja num antiquário, numa marcenaria, num negócio próprio, quem sabe.;
O estudante Gustavo Cordeiro Santos, 16 anos, já é quase veterano em matéria de restauração. Ele se formou na turma do ano passado e, por seu bom desempenho, foi selecionado para restaurar o mobiliário que estava sucateado nos porões do Palácio. ;Fiquei muito feliz quando recebi a notícia porque comecei as aulas já no fim do curso e achei que não conseguiria. Mas valeu o esforço;, comemora.
;Sempre que começo a mexer num móvel desses, faço uma viagem no tempo;, diz. ;É incrível saber que esses móveis já pertenceram a pessoas importantes para o país e que o meu trabalho é preservar essa história. Antes, eu achava que eram só coisas velhas e chatas. Hoje, já tenho uma nova visão disso tudo.; Com a bolsa de R$ 598 que ganha do Programa Jovem Aprendiz, ele ajuda em casa e guarda o que sobra para o futuro. ;Quero fazer faculdade de engenharia.;
Pelas mãos de Gustavo e dos outros aprendizes da oficina, cerca de 800 móveis ganharão uma segunda chance em vez de serem descartados. São móveis de madeira nobre, como o jacarandá, hoje já praticamente extinto, que saíram de desenhos assinados por artistas como Joaquim Tenreiro(1), Maurício Azeredo, Oscar Niemeyer e o próprio Sérgio Rodrigues. ;Não consigo nem dizer quantas peças valiosíssimas foram perdidas por falta de cuidado ou simplesmente descartadas, vendidas. Uma pena!”, lamenta Gastal.
Uma das peças que serão revitalizadas é a mesa Itamaraty, de Sérgio Rodrigues, em que o presidente Juscelino Kubitschek despachava. Uma obra dessas quebrada chega a ser vendida num brechó por R$ 200 ou R$ 300. Restaurada, no entanto, pode chegar a R$ 20 mil num leilão, e certamente teria lugar especial nos acervos de colecionadores. ;Uma vez vim a Brasília e fiquei muito triste porque vi alguns dos meus móveis jogados em porões, sem conservação. Já não acreditava mais que eles pudessem ser recuperados, tinha perdido as esperanças. E hoje, com o trabalho desses jovens, alguns (móveis) estão até superiores do que quando entreguei as peças. Eles conseguiram deixar ainda melhor que o original;, reforça Sérgio Rodrigues. A restauração vai representar uma economia de cerca de R$ 3 milhões ao governo.
A nova
O projeto de restauração de mobiliário moderno do Iphan começou no DF em março do ano passado, com 13 jovens. Mas a ideia foi adaptada de um projeto semelhante que deu certo no Rio de Janeiro, coordenado pelo arquiteto Rogério Carvalho, que na época trabalhava na Superintendência do Iphan no Rio.
Para participar do projeto, os jovens devem ser estudantes, manter uma boa média de notas nas disciplinas e ter entre 15 e 18 anos. A oficina tem duração de seis meses. As aulas teóricas, de história da arte, da arquitetura e de mobiliários, são ministradas por professores da UniEuro no Centro Cultural Renato Russo, na 508 Sul. As aulas práticas são orientadas pelo restaurador Marcos Tavares, na oficina de marcenaria do Planalto. ;Eles são muito dedicados e muito disciplinados;, destaca Tavares.
1 - Artista requisitado
Joaquim Tenreiro (1906-1992) nasceu em Melo, Portugal, e aprendeu os ofícios da marcenaria com o pai. Viveu no Brasil em dois períodos? Dos 3 aos 7 anos e dos 19 aos 20. Mais tarde, já casado, decidiu vir de vez para o país, onde começou a vida como decorador. Mas foi como marceneiro que fez fama, tanto no Rio de Janeiro quanto em São Paulo. Sua última encomenda entregue foi a decoração do salão de banquetes do Palácio Itamaraty, em Brasília, em 1967. Depois disso, decidiu fechar a oficina e as lojas e voltou a dedicar-se à pintura.