O sofrimento de quem depende do sistema público de saúde no Distrito Federal reflete a série de barbaridades praticadas nos hospitais candangos. Em todas elas é possível encontrar flagrantes de desrespeito aos direitos do paciente. É comum, por exemplo, doentes e familiares serem orientados a comprar material básico para o atendimento, insumos que deveriam ser oferecidos pelas próprias unidades de saúde. Ontem, no dia em que se celebrou o Dia das Mães, uma mulher tentava salvar a vida da filha, Lorena Santana, de 10 meses, que não conseguia encontrar vaga em nenhuma Unidade de Terapia Intensiva (UTI) pública.
Como denunciou o Correio na edição de domingo, a dificuldade em encontrar vagas nas UTI aparece como um dos problemas ocasionados pelo descontrole do governo local em relação ao uso de medicamentos e a má-fé de alguns funcionários do setor. Desta vez, o absurdo administrativo afetou a vida da pequena Lorena. A mãe da criança, Rosângela Santos, soube que o bebê sofria de má-formação cerebral, doença incurável, ainda no sétimo mês de gravidez. Desde o quarto mês de vida, a menina padece com crises de apneia (suspensão da respiração), convulsões e sucessivos quadros de pneumonia.
Os médicos acreditam que as pneumonias são causadas porque o alimento entra no pulmão da menina. Para evitar o problema, precisam operá-la para introduzir uma sonda no estômago. Mas, sempre que a pneumonia cede, situação ideal para a intervenção, não há vaga disponível na UTI ou no centro cirúrgico. ;Os pediatras já me disseram que não cedem a vaga porque acham que ela pode falecer a qualquer momento. Eles dão prioridade a quem tem chance de cura;, reclamou Rosângela.
O martírio de Lorena dura 47 dias. Começou no Hospital Regional da Asa Sul (Hras), onde ela nasceu. Depois de duas noites no local, a mãe da menina ouviu que ela estaria tomando a vaga de uma outra criança e seria transferida ao Hospital Regional do Paranoá, cidade em que a família vive. Como não há leitos de UTI disponíveis na unidade, a pequena passa as noites internada no serviço de emergência.
A pediatra responsável pelo caso, Ana Carolina Monteiro da Cunha, fez um relatório (1) explicando o caso e pedindo vaga em uma UTI à Central de Regulação de Leitos da Secretaria de Saúde do DF. No documento, ela afirma que a menina corre risco de morte iminente. A mãe soube, no meio da tarde de ontem, que havia conseguido um leito. A expectativa era de que Lorena fosse encaminhada para uma unidade intensiva de um hospital particular de Brasília.
;Esparadrapo imundo;
A escassez de leitos não é o único drama que os usuários do sistema enfrentam. Reportagem publicada ontem pelo Correio revelou que a falta de controle e de medidas de segurança possibilitam o roubo e o extravio de equipamentos médicos e remédios. Na saga para garantir a vida da pequena Lorena, a família da menina também esbarrou na falta de infraestrutura dos hospitais. ;A mãe dela sempre compra medicamentos e esparadrapo antialérgico para ela;, denuncia a tia da criança, Maria Aparecida Fogaça. Esta semana, a equipe que cuida da menina pediu um exame feito apenas em clínicas privadas, ao custo de pelo menos R$ 250. Exame semelhante na rede pública, só em julho.
A doméstica Eliane Martins, 48 anos, disse que o irmão espera por uma cirurgia no maxilar, mas a intervenção foi adiada inúmeras vezes, sem qualquer justificativa. ;Outro dia, vi um esparadrapo imundo pregado no meu irmão e pedi para o enfermeiro trocar. Ele disse que ficaria para depois;, revoltou-se.
A cabeleireira Lílian Amorim, 31, também tem péssimas recordações do hospital. Há dois anos, ela ajudou uma amiga a cuidar do marido, internado no local após um atropelamento. ;Ela já chegou a comprar gaze, equipo (cano que transporta o soro para a veia do paciente), remédios para feridas causadas pela falta de movimentos e até analgésicos;, denunciou. Outra queixa que a amiga fazia à cabeleireira é de que cabia a ela cuidar da higiene, alimentar e assegurar o bem-estar do marido durante o período no hospital, que durou seis meses. O homem morreu.
A Secretaria de Saúde do DF não quis se manifestar sobre as denúncias a respeito da penúria nos hospitais. Uma das primeiras decisões do governador Rogério Rosso (PMDB) foi descentralizar o orçamento da saúde, repassando diretamente a quantia proporcional a cada hospital. Com isso, as unidades terão autonomia. A mudança começa a ser implementada na semana que vem. Outra medida para aumentar o controle da destinação de medicamentos é promover a informatização de 100% das unidade. Também está prevista a contratação de profissionais aprovados em concurso público.
1 - Rede privada
Os pacientes com dificuldades para encontrar vagas nos hospitais públicos podem tentar um leito na rede particular. O processo, no entanto, não é simples. É preciso que o médico responsável pelo caso faça um relatório explicando a situação e a gravidade do paciente, para que os familiares entreguem à Defensoria Pública do Distrito Federal. O órgão encaminha o pedido a um juiz e verifica junto à Central de Regulação de Leitos a possibilidade de transferência para outro hospital público, ou, se for necessário, para uma instituição privada.