Na medicina, hemorragia significa sangue esvaindo para fora dos vasos, o que pode matar o paciente em questão de horas. O sentido literal desse problema quase sempre letal se aplica figurativa no sistema público de saúde do DF. A rede responsável por cuidar da integridade física de uma população com mais de 2,6 milhões de pessoas sofre com uma espécie de ferida que não estanca: o roubo, o desperdício, a falta de controle. O que se esvai da carente rede pública são remédios, luvas, esparadrapos, agulhas, fios de sutura, seringas e até equipamentos complexos, como respiradores, e peças de raios X.
A causa dessas perdas muitas vezes é atribuída a maus servidores e até a pacientes. Em 2009, o orçamento para a compra de remédios e insumos foi de R$ 2 bilhões. Há indícios de que o mau uso de materiais hospitalares, o desperdício de medicamentos e até mesmo o furto de aparelhos e remédios das prateleiras de enfermarias e postos pode ter consumido quase R$ 70 milhões. É dinheiro que colocaria de pé um hospital com capacidade para 150 pacientes internados.
O Correio percorreu sete dos 12 hospitais que compõem a rede pública do DF. A reportagem entrevistou diretores, médicos, enfermeiros, farmacêuticos, pacientes e delegados. O resultado são relatos impressionantes do furto de produtos que vão desde aspirinas a antibióticos cuja ampola pode custar R$ 400. No Hospital Regional de Taguatinga (HRT), o segundo maior da capital federal, há setores em que o rolo de esparadrapo teve de ser acorrentado às prateleiras. ;Aqui, esparadrapo tem pernas;, ironizou uma enfermeira.
Não é só isso. A má-fé combinada com a falta de segurança facilita o extravio não apenas de pequenos objetos. Nesta semana, oito chuveiros, quatro válvulas de descarga, além de torneiras, desapareceram da enfermaria do HRT. Há alguns meses, foram surrupiados seis focos de luz usados nas salas cirúrgicas. Há situações tão graves que viraram caso de polícia, com instauração de inquérito. Existem atualmente três investigações abertas para apurar furto de medicamentos e aparelhos na Delegacia de Falsificações e Defraudações, na Divisão Especial de Crimes contra a Administração Pública e ainda na Delegacia de Repressão a Furtos. As apurações correm em sigilo, mas, segundo o diretor da Polícia Civil, Pedro Cardoso, se referem ao desvio de drogas de alto custo e equipamentos hospitalares. ;É uma situação preocupante que necessita de uma ação firme do Estado, porque tem reflexo direto na qualidade de vida das pessoas;, considera Cardoso.
Tumor
No Hospital de Base, uma servidora será indiciada por ter roubado o equivalente a R$ 30 mil em remédios (leia matéria na página 28). Foi também no HBDF ; onde são atendidos 800 pacientes por dia ; que sumiu um aspirador ultrassônico usado no setor de neurocirurgia. O aparelho custa por volta de R$ 80 mil e é essencial para intervenções delicadas, como a retirada de tumores cerebrais. Também foi levado da unidade um respirador destinado a pacientes com doenças graves, equipamento no valor de R$ 10 mil. Em 25 de junho de 2009, a direção do Hospital Regional do Gama (HRG) abriu sindicância para apurar o sumiço de chassis usados em aparelhos de raios X. O procedimento interno foi arquivado por falta de provas. O caso chegou a ser registrado em boletim de ocorrência na 14; Delegacia de Polícia.
No HRT, estão em curso duas investigações sobre servidores flagrados em atitudes suspeitas. Em um dos casos, a funcionária foi pega retirando do hospital jalecos bordados com as iniciais da Secretaria de Saúde. As roupas estavam dentro de uma sacola. O outro processo trata de uma servidora que escondeu na bolsa caixas de Dipirona (um tipo de analgésico) e Berotec (útil no tratamento de asma e bronquite). ;Há pessoas que agem numa farmácia hospitalar como se estivessem num supermercado. Vão às prateleiras e pegam o que querem, só não pagam, porque acham que a coisa pública não precisa de cuidado;, diz Joaquim Pereira, diretor do HRT.
Médico de carreira da rede pública há mais de 30 anos, Joaquim Pereira confirma que o furto de aparelhos, medicamentos e materiais hospitalares é comum. ;Certa vez, durante uma visita do programa Saúde da Família, encontrei o lençol do hospital transformado em pano de prato na casa de uma ex-paciente;, diz o médico, referindo-se a uma mulher que deu à luz no HRT. Pereira acredita que uma das medidas para coibir os furtos é conferir as bolsas e as sacolas de quem entra e sai dos hospitais. ;Tem de servir para todos, a começar pelo próprio médico que vai dar o exemplo;, acredita o diretor. Ele ressalva que a má conduta de alguns profissionais existe, mas não é regra: ;A maioria é gente da melhor qualidade, que enfrenta com firmeza e profissionalismo uma série de dificuldades da rede pública;.
Há pessoas que agem numa farmácia hospitalar como se estivessem num supermercado. Vão às prateleiras e pegam o que querem, só não pagam, porque acham que a coisa pública não precisa de cuidado
Joaquim Pereira, diretor do Hospital Regional de Taguatinga
O número
R$ 70 milhões
Estimativa dos prejuízos causados pelo desperdício e pelo sumiço de medicamentos, aparelhos e material de consumo nas farmácias hospitalares
Sem rastros do consumo
Dificilmente, o furto de equipamentos hospitalares passa despercebido. Em geral, a falta dos aparelhos é logo notada e a perda quase nunca é mantida em segredo. O mesmo não ocorre com os remédios. Não estão protegidas do desvio cápsulas que podem custar uma fortuna e salvar vidas ; um exemplo é o Metalyse 40 mg, usado por enfartados, no valor de R$ 1 mil a caixa. Só para ter uma ideia, a farmácia do HRT recebeu apenas no mês de abril um volume de 217.134 remédios.
Vinculada à Secretaria de Saúde, a Farmácia Central abastece os hospitais a cada 30 dias. As unidades regionais dividem insumos e remédios entre os centros de saúde. Uma vez no estoque do hospital, o remédio é encaminhado a vários setores, como pronto-socorro, enfermarias e centros cirúrgicos. É a partir do repasse às unidades internas dos hospitais que se perde o rastro do consumo. ;Saiu da farmácia, foi para uma enfermaria, por exemplo, é dado como consumido;, explica a chefe do setor de farmácia do Hospital Regional da Asa Sul (Hras), Eva Fontes. Ela atribui muito do que se perde ao descontrole. ;Há profissionais, até mesmo em função da falta crônica de remédios, acostumados a fazer superestocagem. Para evitar que o setor dele fique descoberto, o servidor pede quantidade maior do que vai utilizar. Mas, às vezes, o paciente melhora ou morre e aquele remédio não é devolvido.;
Soma-se à cultura da superestocagem outra prática comum nos hospitais, onde é difícil restringir o acesso dos funcionários ; em toda a rede, há 30 mil servidores públicos. É costume fazer da farmácia do hospital a dispensa da própria casa. ;Infelizmente, isso ocorre especialmente com os remédios para dor. Dificilmente o servidor vai ao posto e pega uma receita. Se ele precisa do medicamento, se vale do acesso facilitado;, relata o diretor do Hospital do Gama, Robson Umbelino Brito.
O desperdício consome em torno de 30% do volume de medicamentos enviados para os pacientes do sistema público. Em toda a rede, são gastos anualmente R$ 232,1 milhões com a compra de remédios. Significa dizer que os extravios consomem pelo menos R$ 69 milhões em um ano. A estimativa confirmada por gestores da rede é feita com base na economia gerada a partir da experiência-piloto dos hospitais que passaram a fazer um controle rígido, por meio da informatização e da dose individualizada(1).
As unidades que testaram o sistema dão conta da economia. É o caso dos hospitais regionais do Gama, de Samambaia e do HBDF. Por dois anos, o HRG teve acesso ao programa de computador para a sistematização da dose individualizada. ;No período, notamos uma redução no consumo de remédios da ordem de um terço;, registrou Maria José de Castro, chefe do Setor de Farmácia no Hospital do Gama. O problema é que o contrato era emergencial e foi encerrado, e os servidores aposentaram a rotina de controle que havia apresentado bom resultado. (LT e HM)
1 - Preparação
Na dose individualizada, a quantidade da medicação é calculada por paciente a cada 24 horas. A medida evita o desperdício e os desvios de remédios, mas, para que funcione, é necessário a organização de um setor específico com profissionais treinados para lidar com o preparo das dosagens. Esse sistema é organizado por meio de um programa de computador.