A família do pai da menina de dupla nacionalidade, paraguaia e brasileira, que vive em Vicente Pires há três meses, refugiada dos abusos sexuais supostamente cometidos pelo padrasto, no Paraguai, terá de esperar até a próxima semana para saber se terá ou não a guarda provisória da criança. A juíza da Vara de Família de Taguatinga enviou ontem o processo ao Ministério Público do DF para que os promotores se manifestem sobre o caso. Na segunda-feira, haverá uma audiência para ouvir a tia e o irmão, os requerentes do pedido de guarda. A menina tem 10 anos,e, por quatro, foi vítima de sucessivos estupros comprovados por laudos do Instituto de Medicina Legal do DF (IML). Além disso, ela afirma ter sido obrigada pelo marido da mãe a consumir maconha e bebida alcoólica durante o período em que conviveu com o algoz.
[SAIBAMAIS]O Correio contou nesta sexta-feira (7/5), com exclusividade, a história de Alice*. Desde os 6 anos, ela morava em um sítio em Pedro Juan Caballero, cidade paraguaia que faz fronteira com Ponta Porã (MS), com a mãe e o padrasto. A menina mudou-se para lá depois da morte do pai, que era brasileiro, em um acidente de moto. Logo que passou a conviver com o padrasto, passou a sofrer sucessivos maus-tratos e foi obrigada a fumar maconha e ingerir bebida alcoólica. Em uma das agressões, a jovem teve o antebraço tatuado, com uso de agulhas, contra a própria vontade. Ela atribui a autoria de todos os abusos ao marido da mãe.
Autoridades nacionais e internacionais mobilizaram-se em busca de informações sobre o paradeiro do acusado de molestar a criança. O DF contatou, inclusive, a Interpol, mas ainda não recebeu resposta. Durante a procura por informações, a polícia de Brasília encontrou um processo por tráfico de drogas que traz o nome do suspeito como réu. A polícia busca saber agora se trata-se dele ou de um homônimo, pois os investigadores enfrentam dificuldades para ter acesso ao número de RG do paraguaio. Essa hipótese ganhou força com o depoimento da vítima, no qual ela afirmou que a mãe e o padrasto traficavam drogas, usavam os entorpecentes e os davam a ela também.
Além da angústia em não saber se Alice será obrigada a voltar para o país em que sofreu os maus-tratos, não há certeza ainda se o caso será investigado e julgado no Brasil. O advogado da família brasileira, Délcio Gomes de Almeida, acredita na flexibilidade do direito internacional e aposta em um acordo entre os dois países. Já o delegado-chefe da 38ª Delegacia de Polícia (Vicente Pires), Gerardo Carneiro, não é tão otimista. "Vejo poucas chances desse caso ser de competência do Brasil. Em todo caso, o Ministério das Relações Exteiores já está avisado e deve entrar em contato com as autoridades estrangeiras", afirmou Carneiro, responsável pelo inquérito.
Luta
Alice veio ao Brasil a passeio, com autorização da mãe. Chegando aqui, não quis mais voltar e pediu socorro aos parentes brasilienses. A movimentação pela permanência de Alice no Brasil, porém, não ocorre só por aqui. A avó paterna de 66 anos, moradora de Ponta Porã, contratou um advogado para tentar, na Justiça do Paraguai, garantir que a guarda da menina seja dada à tia da menina. A avó cria uma irmã de Alice, de 16 anos, e as duas afirmam que, no sítio em Pedro Juan Caballero, eram realizadas sessões de magia. "Essa mulher faz feitiço junto com índias. A gente acredita que ela sempre fez feitiço, fez até para matar o meu filho, que morreu de uma forma horrível", afirmou, por telefone, a avó ao Correio. Alice confirma o gosto da mãe pelas ciências ocultas, mas diz nunca ter participado dos rituais.
A menina tem dois irmãos - a adolescente de 16 e um rapaz de 20, que vive em Brasília e estuda agronomia. Os três são filhos dos mesmos pais. "Tenho muito ódio dessa mulher. Ela abandonou a mim e meu pai, nos fez passar fome. E ainda se juntou com esse homem que fez muito mal à minha irmã. Eu não tinha notícias dela desde que meu pai morreu", lamentou a irmã mais velha. "Agora só queremos tirar ela (Alice) do pesadelo. Queremos Justiça, que eles paguem por todos os sentimentos ruins que trouxeram aos nossos corações", completou.
Os parentes paternos guardam mágoas da mãe de Alice "As outras duas crianças deram sorte de terem sido deixadas para trás. Essa mulher morou com meu filho por 16 anos e não conhecemos nenhum parente dela", revoltou-se a avó. O Correio tentou contato com a mãe de Alice, no Paraguai, durante todo o dia de ontem. O celular dela, único número disponível, estava desligado. Ainda não há informações sobre a localização do acusado de ser o estuprador.
* Nome fictício, em respeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Depoimento
Em busca de uma nova vida
A gente vivia em uma roça. Todos os dias, a minha mãe saía de casa para vender os produtos do sítio, como mandioca. Nessas horas, meu padrasto aproveitava que estava sozinho comigo e fazia "aquela coisa". Ele me pegava com muita força e me machucava. Eu gritava muito, mas ele não parava e gritava mais ainda. Dizia que se eu não aceitasse, ele ia me matar. Eu só chorava. Lá no sítio eu também bebia pinga e fumava maconha porque ele mandava. Meus olhos ficavam vermelhos e minha cabeça doía muito. Eu contava tudo para a minha mãe, mas ela também fumava maconha e não acreditava em mim. Eu acho que eles vendiam droga. Ele também me batia com pedaços de lenha. Eram muitas surras, sempre. Também tentou tatuar meu braço com uma agulha. Eu trabalhava capinando e fazia almoço. A última vez que ele fez "a coisa" comigo foi em dezembro. Depois, eu vim para Brasília. Aqui é ótimo. Vou à escola e faço natação. Fiz muitos amigos e amigas no colégio. Já esqueci a outra vida
Alice, 10 anos.