Maria Alda Freitas, 84 anos, a dona Alda, perdeu as contas de quantos partos fez desde que chegou a Brasília, em 2 de junho de 1958. Pelas contas dela, foram muitos. ;Mais de mil;, recorda-se. O número de afilhados ; como a parteira chama todos os bebês que pegou no colo assim que vieram ao mundo ; e a quantidade de comadres que ganhou durante todo esse tempo também fogem à memória. Dona Alda foi a primeira parteira com diploma em obstetrícia a trabalhar na capital do país e exerceu a profissão por quase 20 anos. Até hoje ela guarda todos os caderninhos nos quais anotava o dia e a hora do nascimento da criança.
O primeiro parto feito por dona Alda ocorreu em 16 de setembro de 1958, no Núcleo Bandeirante. Ela relatou a primeira experiência em Brasília em um pedaço de papel, guardado com muito cuidado até hoje. Na carta, escrita apenas para eternizar o momento, a parteira diz que fez o procedimento do tipo cachimbeira ; nome dado às parteiras que exerciam a profissão sem o diploma. ;Eu não tinha nenhuma estrutura para realizar o parto naquele momento;, afirma. Como aprendera no curso de obstetrícia e enfermagem, dona Alda voltava à casa da família para monitorar os primeiros dias da criança. ;Dava banho no bebê até o umbigo cair. Também ensinava para as mães como cuidar dos filhos.;
Hoje, dona Alda se lembra com saudade do tempo que a chamavam em casa para fazer um parto. Ela não se incomodava em andar longas distâncias e atendia todos os chamados, mesmos nos lugares mais longínquos. ;Sempre que me procuravam eu estava pronta. Largava tudo com muito prazer. Ia em qualquer lugar, de carroça ou a pé, do jeito que dava;, recorda. Dona Alda fazia os partos quase diariamente. ;Não tinha hora para o bebê chegar. Os maridos me chamavam durante o almoço ou enquanto eu dormia;, recorda. Mas, com o tempo, o marido, Estênio Alves Freitas, começou a ficar preocupado com a segurança da esposa e a proibiu de sair à noite. Foi então que ele construiu um galpão atrás da casa para ela trabalhar.
Era da vida de parteira que dona Alda tirava renda para ajudar o marido. Nos relatórios dos partos, ela anotava data e horário, sexo, peso e comprimento da criança e o nome da mãe. As mães apresentavam esse documento para receber o auxílio-natalidade. Pelo serviço, dona Alda cobrava metade do benefício. ;Tinha sete filhos para criar. Trabalhava para levar comida para casa. Graças a Deus nunca faltou nada aqui em casa;, agradece. Mas a generosidade da parteira sempre falou mais alto: ela diz que só cobrava pelo serviço de quem podia. O trabalho de dona Alda rende até hoje o reconhecimento das famílias e de muitos amigos.
História
Dona Alda nasceu em Canindé, no Ceará, mas logo se mudou com a família para Fortaleza, onde viveu até se mudar para a capital do país, antes mesmo da inauguração da cidade. Em 1949, formou-se no curso de obstetrícia e enfermagem pela maternidade Dr. João Moreira. Casou-se com o primo em Fortaleza, onde tiveram quatro filhos. Os outros três nasceram em Brasília. Dona Alda diz logo ter se adaptado à cidade que ainda estava no papel. ;Aqui não tinha luz, a água vinha do poço, o chão era de terra vermelha e a gente tinha que pular as valetas para conseguir andar na rua;, conta. Mas nada atrapalhou o nascimento do amor da parteira pela cidade. ;Adoro Brasília. Todos os dias rezo olhando para esse céu maravilhoso.;
Estênio chegou ao Planalto Central antes da família, em 1957, para trabalhar como motorista. Rodou o Brasil em busca de uma vida melhor. Saiu de Fortaleza, passou pelo Rio de Janeiro, por São Paulo. Lá, ficou sabendo da construção de Brasília e aproveitou a oportunidade para arrumar emprego na cidade que nascia. Com os meses, a saudade da família só aumentava e, com a ajuda do patrão, conseguiu trazer todos para o centro do país. Foram morar na Vila Planalto, depois se mudaram para o Núcleo Bandeirante e, em 21 de abril de 1960, se fixaram em Sobradinho. Dona Alda só saiu de casa com a morte do marido, há três anos, quando se mudou para a casa de uma das filhas, em Planaltina.
Filhos e diários
O casal teve sete filhos biológicos e adotou mais um. A caçula nasceu em 12 de fevereiro de 1967, às 22h40, no galpão atrás da casa da família. Na manhã seguinte, por volta das 8h, dona Alda já fazia mais um parto. Ela nunca recusou um pedido a uma mãe. ;A enfermagem era uma coisa muito boa;, diz, emocionada. A parteira também se orgulha de nunca ter perdido uma criança. ;Se percebia nos exames que o parto era complicado, eu não fazia e pedia para meu marido chamar um médico;, afirma.
A parteira sempre gostou de escrever. A rotina de trabalho, a vida em Brasília e os acontecimentos familiares preenchiam a maioria das páginas dos 10 diários que dona Alda guarda até hoje. ;Minha mãe tem uma vocação literária. Escreveu 10 diários sobre o cotidiano e poderia transformar tudo isso em um livro;, diz a filha Glória Celma Alves Freitas, 42 anos. Mas os problemas de saúde apareceram com a idade e a impediram de continuar o que mais gosta de fazer. Ela encontrou na escrita uma forma de preservar a memória da família e de como ela foi feliz. ;Temos muito orgulho da história delea;, acrescenta Glória.