Jornal Correio Braziliense

Cidades

Oscar Niemeyer abandonou projetos no Rio para montar barraca na construção da nova capital

Comeu poeira, bebeu lama e conheceu o pior e o melhor que há no ser humano

Brasília quase matou Oscar Niemeyer. A quase morte do mais importante arquiteto brasileiro aconteceu nas vésperas do Natal de 1958. Fazia pouco menos de seis meses que ele havia se mudado para a terra vermelha. Voltava para o Rio, de caminhonete, com os arquitetos Nauro Esteves e José Manuel Kluft Lopes, e o Pará, um candango divertido e pau para toda obra. Quando se aproximavam da cidade do Prata (Minas Gerais), uma das rodas se soltou, inteira, do carro. Depois de uma guinada vertiginosa, a caminhonete se aproximou de um precipício. O português Kluft Lopes, o motorista da hora, conseguiu manter razoável controle do veículo até que o passageiro ao lado decidiu interferir, pôs a mão no volante e o resultado foi uma capotagem de bico. Uma, duas voltas.

O passageiro incontrolável saiu voando pela porta dianteira e aterrissou de rosto no cascalho. Era Oscar Niemeyer. Quando a caminhonete parou, o motorista estava com a cabeça no pedal da embreagem. A primeira preocupação dele foi saber o que havia acontecido com o intrépido passageiro. ;Vi que ele estava a uns quinze metros atrás, tentando se levantar. O rosto dele parecia que havia sido liquidado. Era uma pasta de sangue. Então eu pensei: ;Pô, eu vou matar esse homem e vão me matar, vão me expulsar do Brasil;, contou Kluft Lopes ao Arquivo Público do Distrito Federal, em 1998.

Quando conseguiu chegar perto do ferido, ele estava sentado bem próximo a um barranco. Então, Niemeyer se virou para o português e comentou: ;Puxa, rapaz, se fosse de avião, hein?;. Exceto por um ferimento leve no rosto, Nauro Esteves saíra ileso. Apesar do escândalo que estava fazendo, Pará também estava intacto. O arquiteto de rosto ensanguetado foi levado, na carroceria de um caminhão, até a cidade mais próxima, Prata. O neurocirurgião Paulo Niemeyer foi buscar o irmão arquiteto, de avião, e o levou para o Rio de Janeiro. Diagnóstico: fratura de crânio. O criador dos palácios de Brasília passou seis meses em convalescência, mas, em meados de 1959, ele estava de volta ao Planalto Central.

Oscar Niemeyer decidiu voltar para a nova capital em agosto de 1958. Ele conta, em Minha experiência em Brasília, que veio com a intenção de ;exercer fiscalização direta sobre as construções em andamento e dar ao trabalho, inclusive aos nossos projetos, o ritmo contínuo e acelerado que somente um regime de tempo integral poderia garantir;. O arquiteto Carlos Magalhães, que veio em 1958, diz que só Israel Pinheiro esteve mais presente em Brasília que Niemeyer. ;Não podia ser de outra maneira. Se fazia o projeto original, mandava-o para Joaquim Cardozo [engenheiro-calculista] no Rio e do risco no papel já se marcavam os pontos da fundação e se começava a obra. Era preciso estar perto porque senão o construtor, na pressa, poderia mutilar os projetos. Com o Oscar aqui, isso não aconteceu.;

O arquiteto veio, não aceitou nenhuma comissão exceto o salário de funcionário da Companhia Urbanizadora da Nova Capital (Novacap), mas trouxe sua turma de amigos, arquitetos e nem um pouco. Porém, nem a companhia importada das montanhas do Rio protegeu o arquiteto do sofrimento. ;À noite, ao recolher-me, ou quando todos se retiravam, sentia-me por demais só, e uma angústia enorme me invadia. Na manhã seguinte, porém, já acordava com os amigos batendo na janela (;);.

Um desses amigos era um jovem arquiteto, Glauco Campello, que morava numa das unidades da Fundação da Casa Popular, as primeiras casinhas brancas da W-3 Sul. ;Éramos vizinhos. Ter convivido tão intensamente com Oscar Niemeyer em Brasília foi a experiência mais importante e mais profunda para a minha formação profissional, para minha maneira de pensar e de enfrentar a vida;, diz Campelo, ex-presidente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), hoje com escritório no Rio de Janeiro.

Empolgado com a ideia de construir uma cidade, Niemeyer fechou seu escritório no Rio de Janeiro e desistiu de muitos projetos ; àquela altura já era um dos mais respeitados arquitetos brasileiros. Veio para erguer a utopia em concreto armado: ;A empatia de Brasília decorre dos grandes jardins e da arquitetura do Oscar, de seus palácios brancos e luminosos como os sonhos, objetos brancos como se fossem aparições oníricas;, diz Campello

Niemeyer se lembra da casa branca onde ele morou na W-3 Sul. ;Era uma casa simples e acolhedora e meu mobiliário se resumia, no quarto, a um sofá, uma mesa e quatro cadeiras. Apesar dos desconfortos, minha casa estava sempre cheia de companheiros que nela entravam e saíam como se estivessem no próprio escritório.; À noite, o bravo arquiteto e seus amigos tocavam violão (Niemeyer, entre eles), ou iam para a Cidade Livre. ;Frequentávamos de preferência o Olga;s bar, onde uma freguesia de aparência exótica se divertia, dançando animadamente numa euforia que o álcool estimulava, com as botas sujas de lama, no meio da algazarra dos que se sentavam em volta da pista. Lá ocorriam as cenas mais estranhas e brigas inesperadas;, escreveu Niemeyer, em suas memórias.

Ele próprio brigava muito. É de seu estilo usar um palavrão em cada frase, ou mais de um, dependendo do calor da hora. Não foram poucas as vezes em que Niemeyer se desentendeu com Israel Pinheiro, arquiteto versus capataz. ;Incomodava-nos, principalmente, o espírito personalista que não permitia fossem os assuntos debatidos regularmente, o trato áspero, quase de senhor de engenho, que nos impedia um contato mais íntimo, pelo menos para mim, que não saberia evitar atrito se provocado gratuitamente.; O tempo reorganizou as emoções: ;Divergi bastante de Israel Pinheiro, mas com isso nos fizemos conhecer e respeitar;.

Ter se mudado para Brasília durante a construção foi uma experiência reveladora: ;Conheci homens da melhor formação moral, homens que se entregavam a Brasília de corpo e alma, afastando, para nela colaborar, interesses pessoais de toda ordem, e outros que se caracterizavam pelo espírito aventureiro, ao qual, a par de um interesse sincero pela obra, não faltava o de fazer fortuna;, escreveu Niemeyer. Ele próprio parece ter perdido os limites da civilidade: ;É certo que muitas vezes nos sentimos cansados de tanta luta e trabalho, o que justifica algumas atitudes intransigentes, e até violentas;.

Mais de 50 anos depois, em rápida entrevista por e-mail, anteontem, Oscar Niemeyer, 102 anos, comentou: ;A criação de Brasília significou para mim, à maneira de uma lição, a possibilidade que tive de encontrar um caminho como arquiteto para harmonizar o ritmo extraordinário das obras e a defesa de uma arquitetura mais livre e criativa, capaz de fugir a princípios preestabelecidos. O que seria, a meu ver, a disseminação da monotonia e da repetição;. O arquiteto não participou das festas da inauguração da nova capital. ;Era muito luxo;, comentou, certa vez.