O juiz da Vara de Execuções Penais (VEP) do DF Luiz Carlos Miranda passa por um momento delicado de sua carreira. Desde a prisão de Ademar de Jesus Silva, 40 anos, assassino confesso de seis jovens de Luziânia (GO), no sábado passado, o magistrado tem recebido duras críticas de vários setores da sociedade. Foi ele o responsável por conceder a progressão de regime ao pedreiro, em 23 de dezembro de 2009. Uma semana após ganhar a liberdade, Ademar começou uma das maiores tragédias da história do município goiano, executando sua primeira vítima. Na manhã de ontem, Miranda decidiu quebrar o silêncio. Em entrevista coletiva no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), ele explicou os motivos de sua decisão, e não admitiu que falhou: ;Faria tudo de novo;.
Munido de um calhamaço com mais de 100 páginas sobre o processo e ao lado de outros cinco juízes, Miranda iniciou sua defesa se solidarizando com as mães das vítimas. ;Elas têm o direito de se manifestar como quiserem, inclusive, com relação a mim. Essa revolta eu respeito. O que eu não admito é que um policial, senador ou ministro teçam críticas sem conhecer a realidade do sistema. Isso é inaceitável. O noticiário não pode ser alvo deste tipo de injustiça;, disse Miranda, em alusão às declarações do ministro da Justiça, Luiz Paulo Barreto, e do senador Demostenes Torres (DEM-GO), que questionaram, em audiência pública no Senado, na última quinta-feira, a decisão de Miranda.
Polêmica
O que gerou maior polêmica na soltura de Ademar foi o fato de um exame criminológico, feito em 28 de maio de 2008, indicar que Ademar apresentava sinais de sadismo e traços de psicopatia. Questionado por que colocou o serial killer (assassino em série) em liberdade, mesmo diante do alerta do documento, ele explicou: ;Não existe no processo um laudo apontando o Ademar como portador de transtornos psicopatológicos graves que o tornariam inapto para ser posto em liberdade. O laudo (criminológico) apenas indica que esses sinais (sadismo, psicopatia) se fizeram presentes, como é comum em pessoas que praticam crimes sexuais;, justificou.
O juiz disse que um ano depois determinou que o pedreiro passasse por uma avaliação psicológica e psiquiátrica. O resultado do primeiro, assinado pelo psicólogo Carlos Alexandre B. Silva, realizado em 11 de maio de 2009, mostrou que Ademar ;se apresentou com polidez e coerência de pensamento;, além de demonstrar ;possuir crítica; em relação aos crimes que cometeu em 2005, quando foi condenado à pena de 15 anos de reclusão por abusar sexualmente de dois jovens de 11 e 13 anos no Distrito Federal. O segundo, de autoria da psiquiatra Ana Cláudia Sampaio, informa que ele não possui doença mental e não recomenda medicação controlada.
Miranda reforçou, ainda, que um exame que ateste se uma pessoa é psicopata só pode ser feito pelo Instituto de Medicina Legal (IML), desde que haja um requerimento da autoridade judicial, baseado nas conclusões dos servidores responsáveis pelas avaliações psicóloga e psiquiátrica. ;A psicopatia não é uma doença mental. Em nenhum momento houve o diagnóstico de doença mental, seja no exame criminológico, seja nas avaliações psicológicas e psiquiátricas. Para se pedir esse exame no IML, tinha de haver pedido do Ministério Público, da defesa ou do juiz, desde que existissem indícios de se tratar de uma pessoa inimputável, o que não ocorreu no caso;, justificou.
Prisão perpétua
Ele também lamentou o fato de não poder punir criminosos desta natureza com mais rigor. ;Eu não me sinto bem assinando esse tipo de decisão, não gostaria, mas tenho que cumprir a lei. Mesmo que ele cumprisse a pena integralmente, quem poderia prever que quando ele saísse não iria voltar a cometer crimes? Sendo assim, só uma prisão perpétua resolveria. Então, que mudem as leis. Eu sou pago para aplicar as leis;, afirmou o juiz.
O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Gilmar Mendes, afirmou ontem que o juiz não pode ser considerado o responsável pela liberação do maníaco de Luziânia. De acordo com ele, a responsabilidade, se é que existe, é do sistema como um todo. ;Tudo indica que o juiz fez o que tinha que ser feito, com base no laudo psicológico e no parecer do próprio Ministério Público;, afirmou Mendes. Para o ministro, nesses casos, falta no Brasil estrutura adequada para serem realizados exames e perícias.
Gilmar Mendes enfatizou a necessidade de o Judiciário brasileiro avançar na articulação de políticas públicas voltadas à garantia dos direitos das crianças e adolescentes. ;Temos que sair dos casulos e gabinetes para conhecer a realidade que é extremamente dura de abuso sexual de crianças, pedofilia e uso do crack;, disse, durante encontro no Conselho Nacional de Justiça.
Mães reagem à entrevista
Ary Filgueira
As mães dos seis jovens que podem ter sido assassinados pelo pedreiro Ademar de Jesus Silva, em Luziânia, reagiram com indignação às declarações do juiz da Vara de Execuções Penais do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) Luiz Carlos Miranda. O magistrado lamentou o sofrimento dos familiares, mas disse que ;não mudaria uma vírgula da decisão; de mandar soltar o pedreiro. ;Para ele continuar matando de novo;, retrucou Aldenira Alves de Sousa, 51 anos, mãe de Diego Alves Rodrigues, 13. ;E se fosse um filho dele?;, indagou.
Para elas, a Justiça falhou em soltar Ademar sete dias antes de Diego morrer, em 30 de dezembro de 2009. ;A gente sabe que houve falha;, diz a funcionária pública Sônia Vieira Azevedo Lima, 45 anos, mãe adotiva de Paulo Victor de Azevedo Lima, 16, o segundo jovem a sumir. ;Mas vamos lutar pelos nossos direitos e pela memória dos nossos filhos, que morreram vítimas do descaso;, ressaltou.
A revolta era presente em todas elas. Bastava comentar as declarações do magistrado que logo se ouvia um comentário das mães. ;Se todo juiz agir assim, vai ter um monte de maníaco solto por aí;, alfinetou a contadora Valdirene Fernandes da Cunha, 36 anos, mãe de Flávio Augusto Fernandes dos Santos, 14, que desapareceu do Parque Estrela Dalva 7 em 18 de janeiro. ;Foi uma falha do Estado;, acusa a dona de casa Sirlene Gomes de Jesus, 42 anos, mãe de George Rabelo dos Satos, 17.
Ação
As mães não descartam a possibilidade de entrar com uma ação contra o Estado. ;Vamos primeiro esperar a saída dos laudos para comprovar se são nossos filhos mesmo;, disse Sônia. Ela e as demais estiveram reunidas com o presidente da seccional de Luziânia da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o advogado Divino Luiz Sobrinho. Ele afirmou que a Ordem ofereceu apoio jurídico a elas para acompanhar o desenrolar do caso. Mas rechaçou qualquer possibilidade de abertura de ação de indenização por conta da polêmica soltura do acusado. ;Se precisar, a gente vai ingressar com um pedido formal na Justiça para acompanhar as investigações;, disse Divino.
Críticas sobre o sistema
Durante a entrevista, o juiz Luiz Carlos Miranda não permitiu que fossem feitas imagens dele, por medida de segurança. Ele aproveitou a oportunidade para criticar o sistema para acompanhamento de detentos: ;São nove psicólogos e dois psiquiatras para atender a um universo de 8,5 mil presos. O IML está tão cheio de pedidos de perícias que alguns demoram muito para serem feitos. Se nós encaminharmos tudo ao IML demora muito;.
Ele teceu críticas ainda à ausência de um sistema eficaz de busca de presos condenados. ;Não temos um cadastro único de identificação. Podemos ter gente com mandado de prisão de São Paulo circulando em Brasília e que gente não saiba;, disse Miranda, em referência ao mandado de prisão que existe na Bahia contra Ademar, por tentativa de homicídio ocorrido em 2000, e que a Justiça do DF não tomou conhecimento.
Para Ulisses Rodrigues de Castro, da Associação Psiquiátrica de Brasília, o psicólogo e a psiquiatra não erraram ao escrever o laudo. ;Do ponto de vista da psiquiatria forense, o juiz quer saber se o cidadão possui discernimento dos atos que ele praticou. A doutora (Ana Cláudia Sampaio) afirma que ele não possui doença mental que precise ser tratada. Ela disse apenas que ele era um bandido comum e, da parte da psiquiatria, pouca coisa poderia ser feita;, afirma. Para ele, houve falha na comunicação entre as partes envolvidas no caso. ;Acho que a comunicação entre o juiz, a psicologia e a psiquiatria não foi clara;, completou Ulisses. (SA)
Cronologia
2 de novembro de 2005
Ademar de Jesus Silva cometeu o primeiro crime sexual, contra dois meninos de 11 e 13 anos no DF.
10 de fevereiro de 2006
O juiz Gilmar Tadeu Soriano, da Segunda Vara Criminal de Taguatinga, condenou o pedreiro a 15 anos de prisão em regime fechado.
6 de setembro de 2007
Os desembargadores da Segunda Turma Criminal do TJDFT acataram parcialmente a apelação da defesa de Ademar para diminuir a pena do preso, que caiu para 10 anos e 10 meses de reclusão.
28 de maio de 2008
Ademar foi submetido a uma avaliação psicológica com três profissionais. Ao final da consulta, os psicólogos apontaram que: ;Entre suas características de destaque, citamos conflitos sérios que favorecem a prática de delitos sexuais. Há sinais inclusive de sadismo, uma perversão sexual em que a busca de prazer se efetua através do sofrimento do outro e de transtorno psicopatológico;. O grupo recomendou a imediata avaliação psiquiátrica do preso e de tratamento psicológico semanal.
18 de maio de 2009
O relatório da médica Ana Cláudia Sampaio informou que Ademar foi avaliado por ela uma única vez e que demonstrava não possuir doença mental nem necessitar de medicação controlada.
9 de novembro de 2009
A promotora Cleonice Maria Resende Varalda pediu uma nova avaliação psiquiátrica do preso para verificar se persistiam os transtornos de sexualidade apontados no exame criminológico, para, só então, o Ministério Público se manifestar sobre a progressão para o regime aberto.
18 de dezembro de 2009
O juiz Luiz Carlos Miranda concedeu o benefício de progressão de regime, permitindo que Ademar cumprisse o resto da pena em domicílio. O magistrado considerou os outros laudos suficientes e não mandou realizar novo exame criminológico. Diante desse argumento, o MP manifestou-se favorável ao benefício.
23 de dezembro de 2009
Ademar aceitou as condições do regime aberto e foi posto em liberdade.