O menino mal acreditou que o neto daquele homem que aparece no livro estava ali. A mãe do menino também não. Tampouco a avó. Mas o neto do homem, aquele que aparece no livro do menino, chegou. E levou 16 companheiros, todos a cavalo, que vieram de muito longe. Eram 14h30 quando a tropa, tocando um berrante, entrou naquela escola de paredes verdes, a 80 km de Brasília, no caminho de Unaí (MG). E levantou poeira na estrada de terra. E o neto tão esperado desceu. E o menino perguntou, perplexo, a alguém que estava ali perto: ;É ele o neto?;.
O menino que mal conhece Brasília ficou cara a cara com o neto do homem que ergueu os palácios e os monumentos da terra imaginada por JK. E, ao som do berrante, entrou na sua escola. Levou esperança a um monte de gente que vive tão perto, mas ao mesmo tempo tão longe da terra onde, um dia, segundo a profecia de dom Bosco, ;jorraria leite e mel.; O neto do homem que ergueu os palácios suntuosos da capital federal fez o menino sonhar. Só isso já teria feito valer a pena aquela viagem toda. O neto do homem que aparece no livro do menino tem certeza disso.
O administrador Carlos Oscar Niemeyer, 45 anos, neto do arquiteto genial, cumpriu o pedido do avô para o cinquentenário de Brasília. Em 2007, no centenário do velho Oscar, o neto lhe perguntou: ;Vamos fazer uma cavalgada em sua homenagem?; O carioca Oscar olhou para o neto e devolveu, bem-humorado: ;Nem a cavalo eu ando;. Mas ele gostou da ideia. E o incentivou: ;Então, junte um grupo e leve livros a quem não tem muito acesso a eles;. O neto, carioca do Leblon, ouviu o conselho do avô. Em 2008, juntou amigos, formou uma associação, pediu apoio de empresários e editoras e saiu estrada afora.
Em junho de 2009, a aventura começou. Carlos Oscar e um grupo de cavaleiros partiram do Museu de Arte Contemporânea, em Niterói (RJ), com destino ao Conjunto Arquitetônico da Pampulha, em Belo Horizonte. O segundo destino da viagem seria das Minas Gerais ao Planalto Central, pela rota de Guimarães Rosa, o incomparável autor de Grande Sertão Veredas. E tentariam chegar a Brasília em abril, no mês do aniversário de 50 anos da capital. Na bagagem, além do berrante e da sanfona, livros, muitos livros. Era essa a grande missão dos cavaleiros da cultura.
A primeira etapa foi vencida. O grupo percorreu estradas e lugares inimagináveis. Os cavaleiros ouviram histórias de uma gente muito longe do Leblon. Uma gente que aprendeu a fazer da vida a certeza do impossível. E se emocionaram com tanta simplicidade e com a acolhida em cada escola rural onde pousavam. Cinquenta e oito mil livros ; novinhos em folha ; foram doados a todas as crianças do ensino fundamental dos lugares por onde estiveram.
Mas ainda faltava chegar à terra onde o avô do cavaleiro construiu a cidade moderna. Em 19 de março, a segunda etapa da aventura. Partiram de Belo Horizonte com destino a Brasília. Venceram 850km em estrada de terra. Deixaram para trás as Minas Gerais e desbravaram Goiás. Na tarde de ontem, entraram no DF. Invadiram a Escola Classe Cariru.
Homenagem
O menininho do começo desta história, Gilmar Zanin Júnior, de 9 anos, estava ali, no portão, com os olhos esbugalhados, à espera do sonho. O neto do homem sobre quem ele tanto estudou estava ali. ;Eu matei a minha curiosidade. Fiquei muito emocionado. É bom demais conhecer gente nova;, diz. A casa dele, numa fazenda nas Quebradas dos Guimarães, fica muito longe de Brasília. E repetiu, como se estivesse em transe: ;Eu conheci o neto do Oscar...;.
Os cavaleiros ; funcionários públicos, produtor rural, comerciante, empresário, administrador, médico, que tiraram férias para cumprir a missão ; foram recebidos como heróis por aquela gente simples. A vice-diretora da escola, Semíramis Melo, 42 anos, emocionou-se. Diante dos homens que trouxeram sonhos para suas crianças, ela disse, segurando um microfone com voz embargada: ;Sabemos o valor de cada livro e de cada página que vocês nos doaram. A visita de vocês foi mais que esperada. Nunca pensamos que uma aventura, vivida tão longe, passasse tão perto de nós;.
E, olhando para o neto do homem que o menininho de sua escola esperava, disse: ;Escrever a história é escrever a oportunidade de estarmos vivos todos os dias. Que esse dia fique registrado na sua memória como o dia que marcou a história da Colônia Agrícola da Zona Rural do Cariru;.
Igualmente comovido, Carlos Oscar falou de valores morais para aquela plateia de meninos e meninas e seus pais e avós humildes. ;A nossa capital está sempre em foco. Se os pais ensinassem mais às crianças sobre ética, a comemoração dos 50 anos seria diferente.; Aquela gente o aplaudiu. A agricultora Francisca Maria dos Santos, 66 anos, avó de Emily, 6, aluna da escola, vestiu roupa nova para esperar aqueles homens chegarem. ;Minha neta me chamou. Disse que eu não podia perder.; Santilo Lázaro Ribeiro, 87, também caprichou. Colocou paletó, chapéu e lenço de cavaleiro nas costas. ;Sou devoto do Divino e folião (refere-se à festa do Divino Espírito Santo). Tô aqui por compromisso e devoção;, contou, com o inseparável cigarro de palha.
;A bênção, vovô!”
Professores e alunos, em menos de três semanas, se prepararam para a visita dos cavaleiros. As crianças estudaram e pesquisaram sobre o começo de Brasília. E suas personagens mais importantes. No corredor da escola, foram montados estandes, contando um pouco do início de tudo. Havia a pré-história de Brasília, antes de a capital existir. Tainara, de 10 anos, contava-a ao neto do arquiteto com ares de professora.
Depois, os cavaleiros passearam pelos monumentos da capital. E chegaram às pessoas importantes da construção de Brasília. Lá estavam, representados por três alunos, o arquiteto Oscar, o presidente JK e o urbanista Lucio Costa. Eric Costa, 11 anos, de paletó azul emprestado pelo pai da professora, era JK. Guilherme Pereira, 9, virou Lucio e Michael Brasileiro, 10, encarnou um Oscar todo falante. Cada um contou a Carlos Oscar o que sabia sobre Brasília. O neto do verdadeiro Oscar, emocionado, tomou a bênção ao avô de mentirinha. Michael não acreditou. Parecia sonho.
Os cavaleiros conheceram ainda a Biblioteca da Família, inaugurada graças à iniciativa da Casa do Saber; visitaram o recém-inaugurado laboratório de informática; assistiram à apresentação de catira, uma dança folclórica de Goiás, e de uma peça dos alunos e ouviram música de raiz, cantada por homens da comunidade rural. O representante comercial Leonardo Assunção, 47 anos, carioca do Leblon, foi um dos cavaleiros da aventura cultural. ;Tivemos a possibilidade de fazer o bem sem interesse político ou financeiro. Rodei o mundo, estive em 18 países, mas nada foi igual a essa viagem;. O filho dele, Thiago de Paula, 22, formado em marketing, o mais jovem da turma, endossa: ;Todos nós voltaremos diferentes depois dessa experiência;.
No fim de todas as homenagens dessa gente tão simples, de um lugar tão improvável para aquela gente do Leblon um dia chegar, o neto de Oscar falou ao Correio: ; Isso aqui é um exemplo de cidadania. A educação ninguém tira de ninguém. É o que ficará para essas crianças e ajudará todas a voarem;.
Depois de 23 escolas visitadas nesse país de contrastes e abismos sociais e 120 mil livros doados, os cavaleiros da cultura ; que se transformaram numa entidade de utilidade pública registrada ; prometem não mais parar. ;Ano que vem, vamos pegar a estrada de novo;, avisa Carlos Oscar, o idealizador da saga.
O menininho que esperou que ele chegasse contará pra todo mundo que um dia conheceu o neto do homem que projetou ;aquelas coisas bonitas; da cidade que ele mal conhece ; apesar de ser tão perto do mundo em que vive. Essa viagem mudou todo mundo. Essa gente que chegou montada a cavalo. E aquela outra, que os aguardava como se esperam heróis para realizar sonhos. E isso, definitivamente, não tem preço.