Ela dizia que um dia voaria daquele lugar. Viajaria sem rumo. Aos 10 anos, a menina pobre voou. Sai da roça e foi morar na cidade. Patos de Minas era o lugar maior aonde havia chegado. Ali, na casa onde moraria, tinha chuveiro. Deliciou-se com o primeiro banho da água que não escorria da bica. Aos 10 anos, a menina da roça virara babá na cidade que queria crescer. Cuidaria de crianças como ela. Em troca, estudaria. Era a glória para a 13; filha dos agricultores analfabetos.
Na cidade maior do que a roça em que vivia, Maria José de Queiroz, que já nasceu Zezé, aprendeu que a vida é feita sempre de troca. Se não deixasse os filhos dos patrões caírem e cuidasse deles com zelo de menina grande, teria o direito de estudar. E foi assim que a menina, tão criança quanto as crianças que carregava nos braços, descobriu que letras podem salvar vidas. Na escola pública da cidadezinha, ela cursou o primário e o ginásio. Encantava-se com as histórias que lia nos livros. Inventava viagens que nunca fez. Sem arredar o pé da então miúda Patos de Minas, ela conheceu o mundo com a imaginação fértil.
De babá, mais mocinha, Zezé trocou de casa e de atividade. Virou doméstica. E chegou ao curso normal. Formou-se em professora primária. A menina que, da porteira, inventava quadro-negro, agora podia escrever de verdade com giz. Mas a doméstica agora professora queria mais. Com as economias do dinheiro das casas alheias, partiu para Brasília. Em 1970, aos 20 anos, chegou à terra de JK. Sonhava com uma sala cheia de alunos.
Parou num pensionato, na W3 Sul. Prestou concurso para a então Fundação Educacional. Foi aprovada. A ex-doméstica agora era professora por mérito. E foi trabalhar com o que mais gostava: a alfabetização. Rodou pelas mais diferentes cidades do DF. Assim, passaram-se dez anos. Nesse período, arregaçou as mangas e trouxe dois irmãos, que também sonhavam estudar, para Brasília.
Zezé se casou com um militar cearense, em 1974. Anos depois, teve duas filhas. A família foi morar no Núcleo Bandeirante. A mulher que ensinava crianças o encantamento pelas letras alfabetizou as próprias filhas. ;Aos 4 anos, elas já sabiam ler e escrever;, orgulha-se a professora. Depois de 18 anos ensinando dia e noite, ela se aposentou. Decidiu que ajudaria as filhas a se formarem. Boa cozinheira, montou um bufê. As meninas se graduaram. Hoje, uma é funcionária do Tribunal Superior do Trabalho; e outra, assessora jurídica da Caixa Econômica.
Devolução
Filhas formadas, rumos seguidos, Zezé decidiu que era hora de fazer algo além de tudo que já havia feito. ;Eu era tão feliz que me vi na obrigação de devolver à comunidade o que a vida tinha me dado;, ela diz. Na casa modesta dela (nunca teve luxo), ainda no Núcleo Bandeirante, fez a primeira experiência. Abriu suas portas para quem desejasse entrar. E se dispôs a ouvir com ouvidos de quem não julga. ;Era uma espécie de terapia alternativa, sem pretensão nenhuma que não fosse escutar;, conta.
Mães com problemas com filhos. Crianças com dificuldade de aprendizado. Casais em conflito conjugal. Uma gente com as mais diferentes dificuldades e desesperos batia à sua porta. Saíam dali com algum livro ou até filme em DVD, que tivesse a ver com aquele momento. A história se espalhou pela vizinhança. As pessoas comentavam que naquela casa uma mulher sabia ouvir e ainda indicava bons livros. Agregou amigos.
Há três anos, a mulher que nasceu na roça se mudou com o marido e as filhas para uma casa maior, na Metropolitana, nos fundos do Núcleo Bandeirante. Naquele lugar extremamente aconchegante, cheio de casas com jardins bonitos e ruas tranquilas, ela procurou saber quem eram seus vizinhos. Apresentou-se. E, mais uma vez, disse que batessem à sua porta quando precisassem.
Do outro lado da rua, numa área pública (atrás do estádio da Metropolitana), numa espécie de hortinha comunitária, ela plantou framboesa, maracujá, cebolinha verde, couve, manjericão e hortelã. Avisou que tudo era de todos. ;De repente, percebi que a vizinhança começou a pintar os próprios muros, a rua ficou bonita;, comemora. E continuou a emprestar livros a quem lhe pedia, ouvir desabafos de quem queria gritar e a falar de transformação de vida para quem tinha a capacidade de escutar.
Juntou novos e velhos amigos e amigas. Gente que mora perto e muito longe. Fez da caminhada dela a caminhada de todos. Apareceu a professora Marcela Akyke, de 39 anos, do Park Way. Vieram também a jornalista Perla Alvez Motta Santos, 57, do Jardim Botânico, e a pedagoga Maria Auxiliadora de Sousa, 60, antiga conhecida do Núcleo Bandeirante. Elas discutem literatura, culinária, pensamento holístico, filosofia, psicologia, natureza... A agenda está sempre lotada. E se alguém bater ao portão, Zezé não deixa de ouvir.
Linha do trem
O grupo de amigos, do qual as quatro fazem parte, virou uma espécie de referência, vai criar o Instituto Gente Viva. ;Já estamos com o regimento pronto. Só falta registrar em cartório;, explica Marcela, a idealizadora do projeto. Zezé continua: ;Iremos nos juntar pra despertar o ser humano e integrá-lo como parte de um todo.; Marcela intervém: ;Usaremos quatro pilares: amor, alegria, prosperidade e saúde;. Apenas sobre um assunto o grupo não debaterá: religião. ;Aceitamos todas as manifestações religiosas, sem sectarismos;, adianta Zezé.
Maria Auxiliadora, por exemplo, é católica fervorosa e praticante. Aos domingos, na paróquia que frequenta, vira ministra da eucaristia. Perla é espírita. Zezé, que já transitou pela Seicho-No-Ie, comungou na missa, confessou com padre, ouviu pastores, hoje se diz ;apenas em conexão com o universo;. Depois de tantas voltas à procura de si mesma, a inquieta Zezé decreta: ;Descobri que há muito ritual e pouca transformação. O divino tá dentro de nós;. E invoca até a física quântica. ;É a física das possibilidades que temos sobre nossas vidas;, explica a mulher que, lá na roça, queria voar como os passarinhos e conversava com as árvores.
Na linha do trem que passa atrás da bucólica Metropolitana, ao lado de uma ciclovia, Zezé faz suas caminhadas. Maria Auxiliadora, quase sempre, a acompanha. Juntas, leem livros. Às vezes, levam cadeiras e sentam-se sob as sombras das árvores. Zezé, quando está sozinha, fala alto. Sem se importar com a estranheza que a cena possa causar. ;Se acharem que sou doida, não ligo;, avisa. Conversa com os passarinhos, uma planta. Há quem estranhe. Mas espanto não causa mais na redondeza. Todos a conhecem como a mulher que fala com a natureza. ;É o pensamento trabalhando, é a emoção à flor da pele;, explica, com sorriso de menina.
Passado meio século desde que saiu da roça, Zezé, hoje aos 60 anos, reflete sobre a vida: ;As pessoas escrevem sua história e fazem suas escolhas;. E conta que, nas andadas perto da linha do trem, tem lido Corpo sem idade, mente sem fronteiras, do médico e escritor indiano Deepak Chopra. ;Ele diz que ;um surto de depressão pode arrasar com o sistema imunológico. Apaixonar-se, ao contrário, pode fortificá-lo tremendamente;. É nisso em que acredito. E olha que minha vida nem sempre foi doce.;
Admirando suas framboesas que não param de nascer, a mulher miúda de 1,50m ; que se tornou grande pelos sonhos que acalentou ; extasia-se: ;Hoje, minhas lágrimas são só de alegria;. Perla a admira: ;Ela é uma grande menina pequena;.
Zezé, lá longe, inventando quadro-negro em porteira de curral, tinha certeza disso. ;Estudar me fez descobrir o mundo e a mim mesma.; Com a descoberta do mundo, a vida se arrebatou. E abriu todas as portas sonhadas por aquela menina que só queria voar. Ela não mudou o mundo. Não descobriu a pólvora. Mudou a pequena rua onde mora. Inquietou, para o bem, gente em torno dela. E principalmente mudou a própria realidade. Essa é a sua grande revolução.
PARTE DE UM TODO
Quer participar do Instituto Gente Viva? Entre em contato com Zezé, pelo telefone 9209-0122 ou pelo e-mail genteviva.marcela@gmail.com
"Estudar me fez descobrir o mundo e a mim mesma"
Maria José Queiroz, professora aposentada
Maria José Queiroz, professora aposentada