A Catedral está vestida de branco. Há sete meses, parece trajar uma enorme saia rodada cor de nuvem. Coberto de mistério, o templo escondeu-se sob um manto para renovar-se, livrar-se de vez das estruturas maltratadas pelo tempo e, depois, ser apreciado em plena forma. Em meio ao vaivém de pessoas e ao trânsito que nunca para, é inevitável imaginar o que se passa sob a lona. Afinal, ali mora o sagrado. Mas é a força do homem que, atualmente, divide espaço com o divino. O cenário é de reconstrução total, trabalho pesado e trabalhadores cansados.
Aos poucos, a beleza da igreja mais apreciada de Brasília volta a parecer inviolável. Assim como quem dá o próprio suor pelas obras do Palácio do Planalto, Praça dos Três Poderes e Teatro Nacional ; e outros seis pontos turísticos que dão personalidade a Brasília e passam por reformas, como o Correio publicou ontem ;, quem trabalha pela revitalização da Catedral faz lembrar os candangos.
A maior parte dos trabalhadores veio de fora. São 40 operários que se revezam em serviços gerais, instalam os vidros de cobertura externa da igreja e os novos vitrais internos. Presos pela cintura em um cabo, os homens planam no ar e trazem de volta o colorido das peças de Marianne Peretti. É preciso ser equilibrista e ter a delicadeza de um artista para encaixar as chapas de vidro da maneira correta, sem quebrá-las. Eles são chamados de alpinistas. ;Às vezes, as peças vêm com a etiqueta trocada e temos que reorganizar. Embora eu não saiba o que esses desenhos significam, achei tudo muito bonito;, afirmou Gilvandro Leal, 23 anos, que veio do Rio de Janeiro exclusivamente para trabalhar nas obras da capital, como alguns pioneiros, na década de 1950.
Durante a reforma, parte da Esplanada dos Ministérios é tomada por cenas fantásticas e inimagináveis em dias comuns. Como pessoas escalando a lona que cobre temporariamente a Catedral por fora, para chegar ao ponto mais alto e pintar as pontas das colunas, que juntas lembram mãos voltadas para o céu. Em meio à paisagem urbana, homens trabalham no topo do prédio de 40m, se misturam ao indefectível céu azul e parecem tocá-lo.
Um deles é o carioca José Amaro, 27 anos, que também instala vitrais. Ele chega a ficar o dia inteiro pendurado pelas costas. Não sente mais dor. ;Já me acostumei. De vez em quando quebra algum vitral. Dá uma tristeza. Aí começa tudo de novo. É um material muito frágil. A parte mais difícil é parafusar. Escalar é tranquilo;, disse Amaro. A previsão é que pelo menos 50% dos vitrais ; confeccionados na Alemanha ; estejam reposicionados até 21 de abril.
Homem-aranha
Embaixo da lona que protege os trabalhadores do calor e da chuva, presos a um cabo, operários andam sobre os vidros que cobrem o templo para terminar de fixá-los. A nova cobertura é de vidro de controle térmico, formado por duas camadas, para diminuir a sensação de calor. O material é trazido da França e processado em São Paulo. ;É uma experiência única subir na Catedral. Tenho um carinho especial por esse lugar. Dá um frio na barriga. Mas me sinto bem;, relatou José Petrúcio Marcelino, 32 anos, morador de Planaltina de Goiás. Assim como muitos candangos, José vai usufruir pouco da paisagem que ajudou a construir. ;Sem ser para trabalhar, é difícil eu passar por aqui. Mas se eu tiver filhos vou poder contar que ajudei a reformar esse lugar;, acrescentou.
Anjos caídos
Enquanto isso, lá dentro, os anjos desceram do teto e estão perto do chão. Frente a frente, parecem maiores, mais imponentes. Representam o divino mais próximo da fragilidade dos seres humanos. As esculturas de Alfredo Ceschiatti são lavadas com água e produto químico apropriado, para que possam voltar às alturas. Antes da reforma, contam os operários, a cabeça de um dos anjos ameaçava se desprender do corpo e cair. Um dos cuidadores dessas obras de arte, Wermeson Moura, 20 anos, morador do Jardim Ingá (GO), nunca imaginou tocar os anjos da Catedral. As mãos dele estão acostumadas com serviços menos nobres. ;Entrei aqui há muito tempo, uma vez só, e achei tudo lindo. Nunca achei que chegaria tão perto deles;, disse.
As condições de trabalho nesse local são atípicas. Com a inclinação do templo, os trabalhadores muitas vezes precisam improvisar novas técnicas na hora de transportar os materiais de construção até o alto. Para carregar os vidros, por exemplo, eles usam um caixote de madeira amarrado em uma corda, pois não é possível instalar elevadores convencionais. Os engenheiros evitaram também os andaimes, para ter espaço livre para trabalhar dentro do templo.
Quando o dia termina, os trabalhadores vão para uma hospedaria, na Vila Planalto. O mesmo local serviu como acampamento para candangos, à época da fundação de Brasília, e, depois, moradia para muitos pioneiros. Ali, quem construía Brasília descansava, para em seguida recomeçar a difícil empreitada. Assim como os operários da Catedral fazem hoje. A história se repete.
OS NÚMEROS
RECURSOS
R$ 17 milhões
vieram da Petrobras
OS NÚMEROS
R$ 8 milhões vieram dos cofres locais
Andamentos da obra
Restauração dos vidros externos: em andamento.
Restauração dos vitrais internos, da artista Marianne Peretti: em andamento.
Recuperação do batistério: completa.
Recuperação do espelho d;água: não começou.
Reforço nos cabos de sustentação e restauração dos anjos de Alfredo Ceschiatti: em andamento.
Impermeabilização das 16 colunas: em andamento.
Revitalização do campanário e conserto dos sinos: em andamento.
Troca dos sistemas elétrico e hidráulico: em andamento.
Pronta por dentro
A expectativa é de que os operários entreguem alguns desses presentes para Brasília na data do aniversário, em 21 de abril. A parte interna da Catedral deve ficar pronta até lá. A reforma externa pode demorar até novembro. Em 2011, a igreja já possui lista de espera lotada para receber casamentos. A revitalização é patrocinada pela Petrobras e pelo GDF e comandada pelo Instituto Ricardo Franco.
Na nave central, as peças sacras foram todas restauradas. Os três anjos suspensos tiveram os cabos de aço trocados e passaram por restauração. As 16 colunas que sustentam o templo serão reforçadas e pintadas. As infiltrações no teto e no espelho d;água serão impermeabilizadas. Os quatro sinos passarão por consertos e voltarão a badalar com a instalação de um moderno sistema eletrônico, que permitirá prévia programação do repique.
As redes hidráulica e elétrica, originais da inauguração da Catedral, em 1970, serão substituídas. Os seis banheiros passarão por uma reforma completa. O pároco, monsenhor Marcony Ferreira, encarregado de administrar o templo, ganhará uma sala para atendimento dos fiéis e os batistérios já estão recuperados.
A construção da Catedral durou mais de 10 anos. Em 12 de setembro de 1958, lançou-se a pedra fundamental do templo, uma das expressões artísticas mais conhecidas do arquiteto Oscar Niemeyer, que é declaradamente ateu. Somente em 1970, ocorreu a inauguração. Duas das relíquias do local são o altar doado pelo papa Paulo VI e a imagem da Padroeira Nossa Senhora Aparecida, réplica da original, guardada em Aparecida do Norte, em São Paulo. Mesmo antes de estar concluída, em 1967, a Catedral foi tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Depois do aniversário de Brasília, a igreja estará aberta novamente todos os dias para visitação.(LM)