Jornal Correio Braziliense

Cidades

Médico e dentista sente, com frequência, o frágil limite entre a vida e a morte

Socorrista voluntário, ele desenvolveu técnicas de ajuda a feridos e foi um dos destacados para reforçar as ações no Haiti

Durante boa parte de seus 36 anos, o médico e dentista Paulo Sérgio Guimarães se preparou para alcançar um objetivo: salvar o máximo de vidas possível, fora dos consultórios e salas de cirurgia. O plano começou a ser executado ainda na adolescência, nas ruas do Rio de Janeiro, em parceria com o Corpo de Bombeiros, por meio do trabalho do Grupo de Resgate de Emergência (GRE), do qual o médico é criador. Onde houvesse um ferido em acidente, lá estava Paulo Sérgio para ajudá-lo. A experiência de salvamento, no entanto, atingiu o ponto máximo em uma data que será lembrada com tristeza pelo mundo, para sempre: o terremoto no Haiti, em 12 de janeiro deste ano.

O doutor estava em missão humanitária como voluntário pelo Exército Brasileiro quando viu, no começo da noite, o chão se mexer como se fosse feito de papel. Em seguida, o terror tomou conta da base militar da engenharia, onde ele estava instalado. Mutilados e feridos gravemente chegavam aos montes. Sérgio teve de encarar o olhar vazio de quem esperava pela morte e tentar transmitir um pouco de esperança. Diante do inevitável, segurou a mão de centenas de pessoas enquanto elas se despediam da vida, não permitindo que muitas morressem sozinhas. ;Agarrar a mão de alguém na hora da dor pode significar muito. Não tem preço;, disse. Nas primeiras duas horas, somente na base onde Sérgio trabalhava, morreram 27 pacientes. Os corpos dos que não resistiam eram levados para câmaras frigoríficas. Quando o espaço acabou, passaram a ser enterrados em buracos coletivos na terra. Eram mais de 50 cadáveres por vala.

Aperfeiçoamento
Sérgio teve a oportunidade de contribuir com sua experiência e entendeu naquele momento o propósito da trajetória dedicada ao salvamento construída por ele, desde os 16 anos, quando inaugurou o GRE. Após cursar odontologia, ele, influenciado pela mãe, que é médica, entrou para a medicina e formou-se em 2007, em Brasília. Não satisfeito com a possível rotina de consultórios que viria a encarar, viajou para sete países ; Alemanha, Inglaterra, França, Estados Unidos, Bélgica, Holanda e República Tcheca ;, nos quais participou de aulas de aperfeiçoamento em medicina em situações de catástrofe. Faltava colocar em prática o aprendizado.

Motivado pelo pai, o coronel da reserva Carlos Henrique Guimarães, Sérgio ingressou no Exército. Em 2009, surgiu a oportunidade de ir ao Haiti, um dos países mais pobres da América, ao qual o Brasil prestava ajuda humanitária com a presença de tropas em Porto Príncipe, a capital. Sérgio embarcou em 9 de julho, como segundo-tenente médico voluntário e esperava encontrar de tudo: tsunamis, grandes incêndios e situações de extrema violência e miséria. Mas jamais imaginou testemunhar a devastação de um terremoto da magnitude de 7,0 na escala Richter.

Em setembro de 2009, meses antes da catástrofe no Haiti, Sérgio e um grupo de outros seis médicos e 20 enfermeiros pareciam prever o que viria. Por sua iniciativa, eles organizaram um treinamento de primeiros socorros em desastres naturais para 50 haitianos. Durante uma semana, os alunos aprenderam a se comportar na presença do risco. Quatro meses depois, tiveram de colocar as lições em prática para tentar escapar dos tremores de terra. ;O conhecimento repassado no curso pode ter ajudado algumas pessoas. Em três dias, nossa base atendeu centenas, muitos sem braços, sem pernas, agonizando. Os remédios estavam acabando, era um desespero e tínhamos de fazer uma escolha difícil: atender primeiro quem tinha possibilidade de sobreviver;, relatou.

Hospitalidade
O tenente guarda no computador as fotos da rotina no Haiti antes da tragédia. Ele aparece nas imagens cercado por crianças e por adultos sorridentes. Em uma das fotografias, Sérgio ensina meninos e meninas a escovarem os dentes, em outra transforma balões em bichinhos para agradar aos pequenos. ;Nosso dia a dia era tranquilo. O povo do Haiti é muito hospitaleiro e adora os brasileiros.;

Sérgio se orgulha de ter voltado para casa, para a noiva e para a família, em 26 de fevereiro ; quase um mês depois da primeira data prevista para o retorno ; como um homem melhor. A sensação de missão cumprida veio depois de ter estado lá nos piores momentos. ;Carregamos uma mulher nos braços até o hospital, ela precisava de cirurgia. Quando chegamos lá, havia uma fila com mais de mil pessoas. Voltamos para a base e fizemos a manutenção da vida dela, até a cirurgia. A mesma coisa aconteceu com crianças que chegavam aos prantos. Foram dias difíceis. Lembro muito dos gritos dos que chamavam por Jesus. Mas não tenho pesadelos. Sou um cara que chora até em propaganda de margarina. Então, lá, o chorar era constante. Era a única forma de descarregar;, relatou.

O médico vê a vida com olhos de quem presenciou a devastação. E depois de passar 6 meses e 28 dias no Haiti, conta o tempo de forma diferente. ;Quando me perguntam se passei a ver a morte de forma diferente depois do Haiti, respondo que não. Comecei a enxergar a vida de forma diferente depois do terremoto, cada momento, cada presença no mundo.; Quem conhece o caminho trilhado pelo doutor fica com a impressão de que a vida dele caminhou para chegar àquele momento crítico, quando o chão tremeu e engoliu a vida de mais de 200 mil, deixando milhões dilacerados por dentro e por fora. ;A sensação de salvar uma vida é indescritível. É isso que ganhamos em troca.;

O início de tudo
A história de salvamento de Paulo Sérgio Guimarães começou muito antes do Haiti. Em 1996, um amigo do médico, à época adolescente e cursando o ensino médio, sofreu um acidente e, por falta de informação de alguém que tentou salvá-lo antes da chegada dos bombeiros, perdeu os movimentos dos braços e das pernas. O acontecimento incomodou o futuro profissional da saúde de tal maneira que ele se sentiu motivado a fazer algo para evitar a repetição da história.

Desse sentimento nasceu o Grupo de Resgate de Emergência. Durante mais de 10 anos, os jovens se reuniam na madrugada para ajudar bombeiros e policiais a socorrer acidentados nas mais diversas situações. Eles muitas vezes chegavam antes do atendimento especializado, tinham curso de primeiros socorros e evitavam a aproximação de quem pudesse cometer erros.

As técnicas de salvamento dos bombeiros se aprimoraram e o grupo foi, aos poucos, saindo de cena. Os rapazes, porém, não desistiram de ajudar. Por meio de cursos e palestras, repassaram os conhecimentos sobre primeiros socorros para a maior quantidade de gente possível, na intenção de contagiar a todos com o gosto por afastar as pessoas do perigo. Estiveram em escolas e empresas em todo o país, muitas vezes de graça. O serviço de consultoria permanece em atividade.


Conheça de perto

Paulo Sérgio e uma equipe de seis pessoas, por meio do GRE, oferecem palestras gratuitas para escolas e outras entidades que queiram orientação sobre primeiros socorros, por exemplo, em acidentes domésticos, uma das causas mais frequentes de mortes de crianças. Contato: pauloguimaraes@gre.com.br.