Jornal Correio Braziliense

Cidades

Documentário destaque no Festival de Cinema de Brasília se desdobra em trabalho inédito

Menores que estavam envolvidos com o crime vão tomando consciência e, por iniciativa própria, investem em uma vida mais digna

Aos 18 anos, Paulo (nome fictício) carrega na consciência um número de homicídios pouco menor que sua idade. Ele matou 15 pessoas. Começou ainda criança no crime. Acabou no Centro de Atendimento Juvenil Especializado (Caje). Durante a internação, aceitou participar do documentário Pra ficar de boa, sobre a vida nas ruas de Brasília e no centro de recuperação para menores. O menino sensibilizou a cineasta Núbia Santana, autora do filme, ao pedir ajuda para mudar de vida e arrumar um emprego. Diante do apelo por socorro, a artista inquieta passou noites em claro na tentativa de descobrir como encontrar um caminho não só para Paulo, mas para centenas de meninos e meninas que compartilhavam com ele o desespero de querer mudar, mas não conseguir.

Assim nasceu a ideia do Projeto Nota 10, no qual os jovens são remunerados com R$ 300, tirados do bolso de Núbia, para deixar o crime e se dedicar ao aprendizado do cinema, do teatro, da música e da dança. Há oito meses, a iniciativa atende 15 adolescentes no Riacho Fundo I, onde Paulo mora, e é considerada pioneira em todo o país, por causa do salário oferecido. Quando chegou ao Caje para gravar o filme, Núbia pediu à diretoria que lhe apresentasse os 10 casos mais problemáticos. ;Daí surgiu o nome do projeto; os 10 piores se transformariam em 10 melhores;, conta.

Ali, os jovens recebem lições de arte e cultura. Em cada dia da semana, uma atividade é ensinada. Segunda-feira é dia de aprender a operar câmeras de vídeo, terça é hora de teatro e a quarta é dedicada à capoeira. ;É muito difícil manter o projeto. Eu vim de Pernambuco, passei fome e conheço a história de cada um desses meninos. Por isso, tiro dinheiro até da escola do meu filho para seguir adiante com o plano. Tenho esperança de conseguir mais apoio;, disse Núbia. A cineasta conta com a ajuda de outro projeto social, o Centro Cultural Grito de Liberdade, que existe há 14 anos. Os capoeiristas ensinam os movimentos desse esporte aos adolescentes. Ao mesmo tempo, tentam repassar lições de afeto, cidadania e mostrar caminhos alternativos ao crime e à violência.

Mudança
Dentro de um sobrado simples, na QS 10 do Riacho Fundo I, acontece uma revolução. Antes considerados casos perdidos ; muitas vezes até pelas próprias famílias ;, os meninos aprendem a olhar para a vida com um pouco mais de amor pelo que ela traz de bom e a superar as partes ruins. No início, quando chegavam para as aulas, os garotos queriam exibir armas e se orgulhavam de estar fora da lei. Aos poucos, essa atitude foi mudando e as ideias começaram a ser moldadas para o bem.

Danilo Almeida, hoje com 18 anos, era conhecido na cidade como Satã ou Capeta, desde os 14. ;Eu não tinha perspectiva nenhuma. Roubava, usava droga. Não pensava em futuro. Na rua, eu aprendi tudo de errado. Só tinha contato com o crime;, lembrou. ;Depois do projeto, voltei a estudar, estou terminando o ensino médio. Percebi como minha mente era vazia. Agora, quero fazer faculdade de educação física.;

Os jovens encontraram nos professores exemplos em quem se espelhar. O idealizador do Grito de Liberdade, Mestre Cobra, entende bem a realidade dos alunos. Ele já esteve do outro lado da história e hoje ensina sua arte a quem decidiu reescrever a própria trajetória. ;Eu mesmo saí do mundão pelo berimbau, quando consegui entender o que era o esporte, a arte da expressão corporal. As drogas estão acabando com a sociedade. Quando comecei, os meninos usavam Rohypnol, agora estão no crack. É importante se mobilizar para tirá-los desse caminho;, alertou Mestre Cobra, que desde 1994 trabalha com a mediação de conflitos em 20 regiões do DF e do Brasil.

Os discípulos de Cobra formaram uma espécie de corrente do bem. Quem aprendeu, agora ensina. ;Aqui, nos livramos da escravidão incubada em nós mesmos, de achar que é impossível melhorar. Com a cultura, trazemos personalidade para a vida de cada um;, afirmou Luiz Cláudio de Oliveira, o Minhoca, que foi aluno de Mestre Cobra e hoje dá aulas. ;Nem sempre a gente consegue fazer com que os meninos fiquem aqui. Muitos voltam para o mundão, mas quem fica é importante;, explicou. Além da capoeira, os participantes podem aprender outras vertentes da cultura popular como o maculelê ; com coreografias de origem africana e o uso de espadas ; e a dança do fogo.

Arte
Nas aulas de teatro, os monitores usam a técnica do dramaturgo Augusto Boal, na qual há o opressor e o oprimido. Nas classes, os professores determinam, por exemplo, a seguinte situação: há o assaltado e o assaltante. Todos devem fazer os dois papéis. A tática incentiva os adolescentes a se colocarem no lugar do outro, experimentando, ainda que na ficção, as sensações ruins que um dia causaram. ;Nunca pensei em filmar nada. Nem tinha hábito de ir ao cinema ou ao teatro. Tinha uma ideia diferente sobre arte. Para mim, era uma coisa de gente rica, que nunca ia chegar aqui;, relatou Washington Pereira, 17 anos. ;O salário foi uma isca para atrair a gente. Mas depois a gente se afastou de verdade da rua.;

Núbia Santana fica feliz ao ver o projeto caminhando bem. Os jovens vão se apresentar ao lado da banda Olodum, durante o show Nota 10, no dia 21, no Riacho Fundo I. Às 16h, haverá aulão de capoeira com Mestre Cobra. A entrada custa 2kg de alimentos não perecíveis. ;É um esforço, uma loucura manter uma escola de arte que paga para ensinar. Queremos parceiros para o projeto e esse show deve melhorar as coisas. A ideia é expandir o projeto para outras regiões, como Ceilândia e Planaltina. A gente precisa meter a cara e fazer alguma coisa de verdade, promover uma revolução pelo amor e pelo afeto;, acredita a cineasta.

Para saber mais
Aprendizado in loco

Além de cineasta, Núbia Santana é atriz. A ideia de fazer um filme sobre a realidade dos meninos de rua e do Caje surgiu depois de uma peça na qual Núbia conheceu uma menina sem teto. ;Fui levá-la para a rua depois do espetáculo e acabei passando a noite com ela e um grupo de amigos dela. Eles falavam muito do Caje, decidi conhecer.; Durante um ano, Núbia cultivou intimidade com os internos e viveu um pouco da vida de cada um deles. Nas gravações, como não podia mostrar o rosto dos menores, Núbia foi criativa e pintou o rosto deles, inspirada no estilo de uma famosa trupe de circo e em pinturas cubistas. O filme foi exibido no 41; Festival de Cinema de Brasília e recebeu convites para participar de eventos no exterior. Os 70 minutos de vídeo têm como objetivo mostrar a origem da violência, como ela se repete e, principalmente, a possibilidade de mudança. ;Os franceses gostaram muito. Um cineasta de lá me disse que nunca viu tanta violência mostrada com tanta poesia;, orgulha-se Núbia.

Programação
# Show Nota 10 e aulão de capoeira

# Dia 21, a partir de 16h
Com Olodum e Projeto Nota 10

# Local: Terminal Rodoviário do Riacho Fundo I, na AE 4, ao lado do BRB

# Entrada: 2kg de alimentos não perecíveis