Hakodate é uma bela cidade portuária localizada no extremo sul de Hokkaido, uma das quatro grandes ilhas que compõem o Japão. Para sair de lá e chegar a São Paulo, é preciso percorrer algo em torno de 17.873km. Em 1934 , foi exatamente isso que a família de Umazo Shinoda ; que à época contava 16 anos ; fez. O motivo era o mesmo que levou milhares de japoneses a abandonar a terra do sol nascente: a ameaça de uma nova guerra mundial. Setenta e seis anos se passaram desde que Shinoda pisou pela primeira vez no Brasil ;desses, 50 anos vividos em Brasília. Leitor, suas contas estão certas. Shinoda tem hoje 92 anos.
Ao embarcar rumo à América do Sul, Shinoda deixou para trás não só o mundo que conhecia, como cavaletes, telas, pincéis e quadros que materializavam a alma de artista plástico descoberta aos 9 anos, quando começou a estudar aquarela. ;Meus professores notaram minha habilidade bem cedo;, relembra, em um português rústico, eternamente vencido pela língua materna. ;São duas línguas muito diferentes;, justifica. As mãos capazes das maiores sutilezas da pintura foram parar primeiro em uma lavoura de café, depois em uma plantação de algodão no interior de São Paulo. Ele, claro, não se adaptou. A barreira da língua foi tratada com extremo humor. ;Para comprar ovo, eu gesticulava;, explica, abrindo e fechando os braços imitando as asas da galinha.
A solução para o impasse profissional foi buscar cúmplices da arte dentro da comunidade nipônica de São Paulo. Encontrou um aliado muito especial: Manabu Mabe, pintor, desenhista e tapeceiro naturalizado brasileiro. Mabe é considerado um dos pioneiros do abstracionismo no Brasil. A mudança para a capital paulista e a companhia de outros artistas impulsionaram a produção de Shinoda. Seus pincéis se tornaram trabalhadores incansáveis, como o são até hoje. Com Mabe, ele organizou inúmeras exposições coletivas na capital paulista. Seu estilo versátil lhe permite passear sem dificuldades entre o hiperrealismo e o abstrato. Natureza morta ou retratos que mais parecem fotos são criados com igual facilidade. Prêmios e medalhas foram consequência natural. Já são oito medalhas da Associação Nacional de Artistas Plásticos ; seis de ouro e duas de prata. É dono de inúmeros títulos. O principal, Grau Cavalheiros, foi concedido pela Ordem do Mérito das Artes Plásticas.
Rumo à capital
Em 1960, outra mudança. A inauguração da nova capital, Brasília, saltou aos olhos de comerciantes e empresários como uma excelente oportunidade para expandir os negócios. Shinoda, que não era nem um nem outro, aderiu à ideia. Abriu um armazém de secos e molhados e, para não se afastar da pintura, uma loja de tintas na Rua da Igrejinha, na Asa Sul. ;Cheguei a ter 130 funcionários. Pintamos muitos prédios;, conta. A euforia, porém, não durou muito tempo. ;Meus amigos têm boa vida. Eu é que não soube ganhar dinheiro;, diverte-se. Sem traço de ressentimento a respeito do curso da vida ou das escolhas que tomou, ele lembra o que viveu com bom humor constante. Tudo merece um riso, uma piada sobre si. Não há em Shinoda nada que remeta à vanglória ou ao orgulho. Ao contrário, o japonês de Hakodate é todo modéstia, falando de si ou exibindo sua arte. Ele só não pode ser modesto a respeito de uma peculiaridade: aos 92 anos, agacha e levanta, anda, senta e se movimenta como um varão de 15 anos. É um assombro.
A arte falou mais alto e a atuação no comércio teve um fim. Shinoda voltou-se integralmente para sua vocação e começou a dar aulas de pintura. A aluna Denise Brito conhece o professor há mais de 20 anos e até hoje leva suas criações para passar pelo crivo do mestre. ;Não existe outra pessoa que pinte como ele. Fez muitas exposições, tanto exclusivas quanto coletivas;, conta. Uma, no Banco Central, em 1986, foi especialmente marcante. ;Vendi todos os quadros. Foi tão rápido que, para manter a exposição, tive de comprar de volta quadros que tinha vendido para a Prefeitura de Luziânia;, explica o mestre. Os tempos mudaram e hoje a venda das obras está mais difícil, mas nada que o desanime. Criar, para ele, não tem a menor relação com dinheiro.
Amor
Os entreatos da vida do pintor são, na verdade, narrados pela voz da cearense Ondina Shinoda, 57 anos, inseparável companheira, esposa ; e ocasionalmente sua intérprete ; há mais de 30 anos. Ondina é sua curadora pessoal. Ela recorda cada detalhe, conhece todos os quadros, sabe toda a história do marido, mesmo quando não estava lá. Os dois se conheceram em junho de 1977, em um momento de tristeza na vida de ambos. Ondina tinha acabado de perder a mãe e Shinoda enviuvara da primeira mulher, Keiko, com quem teve três filhos ; Osvaldo, Hélio e Vicente. ;Um amigo nosso em comum disse: ;Vou juntar duas tristezas;. E da tristeza veio uma felicidade imensa;, diz Ondina.
Ela revela que, pouco depois de terem sido apresentados, Shinoda quis casar. ;Ele disse que era assim que faziam no Japão. Só se apresentava um homem para uma mulher para que eles se casassem. Eu fui logo dizendo que, no Brasil, a conversa é bem diferente;, explica. Não foi de pronto, mas rapidamente eles acabaram se casando e tendo três filhas: Erika, Sayuri e Cristine. Budista de criação ; ele é um dos fundadores do templo de Brasília ;, Shinoda converteu-se ao catolicismo depois de casado. Ele só conseguiu se encontrar na religião, literalmente, depois que encontrou a raridade de uma Bíblia em japonês, que exibe com certa malandragem. ;Só assim ele escapou das aulas de catecismo junto às crianças;, completa Ondina. ;O padre me diz para confessar, mas eu nunca faço mal a ninguém, vou confessar o quê?;, brinca ele.
Ondina é a pedra angular da divulgação da obra do marido. Ela está trabalhando para conseguir uma nova exposição, este ano, na LBV. Também foi dela a ideia de iniciar um trabalho voluntário de educação artística com os alunos da Escola Classe 1, no Riacho Fundo II, onde o casal mora. ;A educação anda muito decadente e o ensino público precisa desse tipo de ação, sobretudo com as artes, que são consideradas menos importantes;, avalia.
Só a mulher sabe das excentricidades e manias do marido. Shinoda, por exemplo, é um purista do arroz. ;Ele só come o arroz feito como no Japão, sem tempero, cozido só na água. Para ele, risoto é algo profano.; Além disso, Shinoda é um excelente fujão. Segundo Ondina, quando ele quer ir ao ateliê e ela não pode levá-lo ou não há ninguém em casa, Shinoda simplesmente pega um ônibus e vai sozinho. ;Eu fico danada, mas pintar é o que ele ama fazer. Acho que, se hoje ele está tão bem, é devido à arte;, admite a mulher. ;Se não fosse a pintura, seria nada.;
Em 1998, Shinoda foi ao Japão pela primeira vez desde que se mudou para o Brasil. Os parentes até tentaram convencê-lo a voltar a morar lá, sem sucesso. O que ele mais gosta e que tem a ver com o Brasil? ;A Ondina;, responde, de pronto, apontando a mulher. Romântico até o fim.