As horas acertaram a vida do consertador de relógios. Além dos ponteiros que colocou em ordem, deu corda na própria história. Miudinho, falante, destemido, há 47 anos ele está ali, no mesmo lugar, dando sentido ao tempo - aquele que modifica rumos, altera trajetórias, apaga, renova, segue. Sempre segue. E foi assim que ele resolveu viver: seguindo, como os segundos, os milésimos de segundos que nunca deixou parar. Esse é Nelson, baiano, filho de um telegrafista e de uma costureira, irmão de Zenilde, casado com a goiana Lílian, pai de três filhos, cinco netos. Nome completo: Nelson Rios. Profissão: relojoeiro.
Era 1935. Nascia, na distante Pirituba, perto de Jacobina, distante 400km de Salvador, o homem que faria, anos depois, um pacto com o tempo. Inquieto desde sempre, viu um primo mais velho mexer com relógios. Curioso, ficou perto. Menino de calças curtas, pediu para ver o que ele fazia. "Comecei a futucar relógio", conta. Joel, o primo, incentivou. Passaram-se seis meses. Joel sofreu um acidente de carro. E o menino de calças curtas assumiu o ofício de gente grande. Virou um consertador das horas.
Aos 15 anos, em 1950, mudou-se para Salvador. "Lá, fui trabalhar numa relojoaria e me especializei com o Arcanjo, um dos mais afamados relojoeiros da época. Aprendi tudo dentro da oficina", diz. Ao mesmo tempo que não deixava as horas pararem, tocava os estudos. Terminou o ginásio e começou a fazer o curso normal. Um dia sonhou ser professor. Mas parou no segundo ano. Com um cunhado, montou uma oficina no Largo de São Francisco. Ali consertava relógios e vendia peças trazidas do Rio de Janeiro e São Paulo. Logo virou uma das lojas mais procuradas na capital baiana.
Passaram-se 12 anos. Um dia, em 1962, Nelson resolveu conhecer a terra de JK. Disseram-lhe que aqui ele poderia crescer ainda mais. A cidade começava. Tudo daria certo. Em janeiro do ano seguinte, aos 27 anos, o baiano de Pirituba juntou as economias que guardou ao longo de todos os anos consertando relógios e se mudou para Brasília. Alugou uma lojinha na 311 Sul. Morou na parte de cima dela. Foi o sétimo comerciante do lugar. "A gente catava freguês. Não tinha movimento".
Foi ali que montou sua relojoaria. Começava naquele janeiro de 1963 a saga do homem que fez do tempo o aliado. E sabe, como poucos, que elas, as horas, passam como o vento. "Elas não voltam nunca mais", diz. Aqui, na terra que lhe daria prosperidade, Nelson conheceu sua Lílian, a mulher e mãe de seus três filhos. "Aos 33 anos, com a idade de Cristo, me casei", ri. Enquanto ele consertava relógios, ela terminava os estudos na Universidade de Brasília. A mulher do consertador de relógios virou professora e técnica em educação. "Eu cheguei a trabalhar 12 horas por dia. Foi muito sacrifício, mas sempre me deu prazer. Não tem preço pegar um relógio todo arrebentado e colocar ele funcionando."
Os negócios se expandiram. A Relojoaria Rios abriu uma filial no Conjunto Nacional. "Foi a primeira do shopping", conta. Ao mesmo tempo, tentou levar o comércio a Taguatinga - hoje, ambas estão fechadas. Permaneceu apenas a da 311 Sul, onde a história de Nelson realmente pode ser contada. Há 47 anos, ele abre suas portas às 7h30 da manhã. Vai embora no fim do dia, com a sensação de que as horas sempre mudam o rumo das coisas.
Como um paciente
Visitar a oficina de Nelson é como voltar no tempo. No subsolo da loja, centenas de relógios seculares e únicos esperam conserto - alguns de valor inestimável pela história que carregam. Para dar conta do ofício, ele conta com a ajuda do amigo de 47 anos, um homem que entende de horas como ele. Rui José Dias, goiano de 66 anos, encara o ofício como disposição juvenil. "Consertar relógio é manter a vida. É estar de acordo com o tempo. Uma terapia", reflete o relojoeiro de sorriso simpático e gestos delicados.
Por ali já passaram relógios ilustres e um pouco dos rumos do país e alguns dos seus períodos mais emblemáticos. As horas dos ex-presidentes Ernesto Geisel, João Batista Figueiredo e José Sarney foram acertadas ali, naquele subsolo cheio de tempo e delicadezas. "Dona Marly Sarney mandava o motorista trazer os relógios pro conserto", conta Nelson. Tem até um Martionot (legítimo relógio francês movido a corda) à espera de conserto. A peça faz parte do acervo do Palácio da Alvorada, residência oficial dos presidentes da República.
Parou por aí? Não. O homem que manteve o governador Arruda preso - Marco Aurélio Mello, ministro do Superior Tribunal Federal - também usa os serviços das mãos mágicas e precisas do relojoeiro Rui. "Vou à casa dele, no Lago Sul, para consertar um relógio de pedestal, de 2,20m", diz. E elogia, com voz pequena e elegância que faz lembrar o cantor Paulinho da Viola: "O ministro é um homem muito educado. Me deu um exemplar da Constituição brasileira".
Vendendo peças e principalmente consertando relógios seculares, Nelson formou os filhos e construiu seu patrimônio. Hoje mora numa casa confortável no Lago Sul e colocou o canudo na mão de cada um deles. "Uma é enfermeira, outra bancária e o rapaz, o caçula, é músico. Ele mora nos Estados Unidos", detalha o relojoeiro, orgulhoso do que pôde fazer pela família. Hoje, aos 75 anos, Nelson não mais conserta como antigamente. Mas nunca parou. "Todo dia eu mexo numa coisinha. Acerto os relógios. Só descanso no domingo."
Apaixonado pela profissão, o relojoeiro compara o ofício ao trabalho de um médico. "Consertar um relógio é como cuidar de um paciente. Cada detalhe é importante. E se faz tudo para não deixar que morra." E se morre, se o relógio para de vez? Ao contrário do paciente humano, o do relojoeiro sempre ressuscita. Em outro. "A gente reaproveita o que pode e faz com que volte a funcionar. O que não pode parar são as horas."
Ofício em extinção
Nelson e Rui temem pelo futuro de todos os "pacientes", aqueles que contaram o tempo de uma gente que nem mais existe. "O jovem da cidade grande não quer mais aprender o trabalho. Às vezes, o do interior ainda se interessa porque é o ofício que vai ter", constata Rui. Nelson emenda: "Vai chegar um dia em que todos eles (os relógios) irão parar por falta de quem saiba mexer neles. Não haverá substituto".
É meio-dia. As centenas de relógios do subsolo badalam as horas. É como se tudo, contraditoriamente, parasse. O silêncio - embalado pelas batidas das cordas e pêndulos - faz perceber que as horas realmente existem. "Esse barulhinho me faz bem", admite Nelson. Rui limpa os relógios com se limpasse ouro. E filosofa: "A hora é necessidade. Se a gente perde o tempo dela, não recupera nunca mais".
O miudinho Nelson, ainda com sotaque baiano bem marcante, continua, espantado com tanta hora que passou sem perceber: "Cheguei aos 75 anos e nem vi". Em seguida, confessa, emocionado: "Não tenho medo do tempo nem das horas. Ele (o tempo) não nos pertence". Rui, o amigo fiel, também entende disso.
O homem que passou cada segundo de sua vida cuidando das horas alheias gosta de viajar. Recentemente, foi aos os Estados Unidos, para visitar o filho músico. "A primeira coisa que faço é entrar em loja de relógios. Gosto de ver tudo. Fomos a um museu em Los Angeles e fui direto aos relógios antigos." O homem que conhece relógios como poucos tem muitos deles? "Não. Uns três ou quatro", diz. No braço esquerdo, usa um suíço Bulova. "Não foi caro, não. Custou menos de 200 dólares. Comprei na viagem aos Estados Unidos."
Hora do almoço. Nelson precisa se alimentar. De calça preta, celular pendurado ao cinto e sandálias de couro nos pés miudinhos, segue para um self-service da quadra. O expediente, como as horas, tem que continuar. Ele aprendeu que tudo, principalmente o tempo, é inexorável. Esta é a história do homem que acertou ponteiros como acertou a própria vida. Sem deixar que ela se atrasasse um só segundo.