Estudante ;sem-vergonha, seresteiro e boêmio;, o sergipano Kleber Farias Pinto aproveitou todas e mais algumas oportunidades que a vida lhe ofereceu. ;Sempre fui afoito e furão;, diz, aos 76 anos. Essa mistura de ingredientes fez com que ele pudesse colecionar histórias de aventuras vividas desde o tempo em que era aluno da Escola de Minas de Ouro Preto até o período áureo da construção de Brasília.
O temperamento atirado levou o engenheiro Kleber a, por exemplo, valer-se de um almoço solene que o então governador de Minas Gerais, Juscelino Kubitschek, oferecia ao presidente Getúlio Vargas em Ouro Preto para se aproximar, puxar um assunto qualquer e pedir um autógrafo, que hoje compõe um cartão-postal. A data: 21 de abril de 1954, três meses antes do suicídio de Getúlio Vargas.
Engenheiro que participou da instalação da rede elétrica subterrânea de Brasília, Kleber veio para Brasília em 1959 no rastro de mais de 30 colegas formados na mesma escola, a de Ouro Preto, de onde também saiu Israel Pinheiro, o presidente da Companhia Urbanizadora da Nova Capital, a Novacap. A vinda para um canteiro de novidades inchou o baú de histórias de Kleber, que ele vem desfiando nesses 50 anos.
A mais rocambolesca delas é o casamento dele com Ana Maria Castellar de Negreiros Sayão Lobato. Para se casar, Kleber sequestrou a moça. Filha de cientista de origem nobiliárquica, sobrinha de viscondes, Ana Maria fugiu de casa, no Rio de Janeiro, numa madrugada, para vir a Brasília com o noivo. Isso porque a nobre família da moça não aceitou que ela se casasse com um ;boêmio;. Os dois haviam se conhecido numa festa de amigos comuns, antes de Kleber vir para o Planalto Central. Apaixonados, decidiram ficar juntos, mas o pai da moça não aceitou o noivo.
Foi aí que Brasília chegou para salvar o romance de Kleber e Ana Maria. Durante a construção da cidade, o casal continuou o namoro a distância. Passada a inauguração da capital, o engenheiro se viu em condições de mostrar ao futuro sogro que era capaz ;de sustentar uma mulher;. Em 1961, Kleber Farias foi trabalhar como chefe de gabinete do ministro das Minas e Energia, João Agripino Filho. Era a hora, portanto, de trazer a noiva para perto de si.
A fuga
Combinaram que ela fugiria de casa, de madrugada. Que o noivo e o sogro dela a estariam esperando perto do prédio, no Flamengo, e que em seguida embarcariam para Brasília. ;Ela queria trazer todas as coisinhas dela, mas não tinha como; Então ela juntou o que pôde numa trouxa. Quando chegamos ao aeroporto, deu o maior rolo, ninguém queria despachar uma trouxa;, lembra. Casamento marcado na nova capital, Kleber Farias convidou o chefe para padrinho. ;Só de chato. Apesar de ser moleque, como o pai dela dizia, eu estava casando e um ministro de Estado era meu padrinho.; Na edição de 15 de abril de 1961, a Folha de São Paulo publicou pequena matéria com o seguinte título: ;;Raptou; a noiva ;nobre; e casou-se em Brasília;.
Àquela altura, Kleber Farias Pinto já era fartamente conhecido na nova capital pela sua facilidade de estabelecer contatos. Uma das histórias que mais circulavam era a de que ele, diante dos protestos dos operários que se recusavam a trabalhar na sexta-feira santa de 1960, véspera da inauguração, propôs aos candangos uma troca: todos estariam no canteiro de obras no dia santo e, em compensação, depois do 21 de abril teriam cinco dias de folga. A estratégia foi bem-sucedida, todos trabalharam no feriado e ganharam o descanso prometido.
O mesmo Kleber Farias foi o centro das atenções quando, com seu chefe, o engenheiro Abílio Rodrigues do Carmo, construiu uma piscina revestida de mármore no acampamento da Empresa Brasileira de Engenharia (EBE), para a qual trabalhavam. A piscina, na verdade um tanque um pouco maior, foi revestida com os restos dos cortes de mármore usados no Palácio do Planalto e no Congresso Nacional. ;A placa de mármore chega retangular e, para fazer as curvas da coluna, teve de ser cortada. Ficaram os restolhos. Passei num caminhão, peguei tudo e fiz a piscina. Roubei de quem?;, pergunta até hoje. Os moradores do acampamento da EBE, na Vila Planalto, eram os únicos a ter piscina. Além deles, só o presidente da República e os hóspedes do Brasília Palace Hotel podiam aproveitar as delícias de uma piscina no cerrado.
Água de beber
Das histórias que Kleber Farias Pinto mais gosta de contar, a campeã de audiência é sobre Água de beber, música de Tom Jobim e Vinicius. Ele diz que estava no bar do Brasília Palace Hotel, com o jornalista Ari Cunha, quando viu a dupla em outra mesa. Os dois ocuparam o piano e começaram a cantar ;Laraiá-laraiá-laralaiá; eu nunca fiz coisa tão certa, entrei pra escola do perdão, a minha casa vive aberta, abri todas as portas do coração. Água de beber, água de beber, camará;;.
(Tom e Vinicius compuseram a música durante sua estada no Catetinho, inspirados no burburinho de um olho d;água nas proximidades e da resposta que um candango lhe deu quando os músicos investigavam a origem do doce murmúrio: ;É água de beber, camará;;)
Trinta anos mais tarde, num show de Tom Jobim em Brasília, Kleber Farias ouviu novamente a música. Furão, como sempre, foi ao camarim do maestro, lembrou a ele que Água de beber foi a primeira música composta em Brasília e pediu algo que comprovasse isso. Então, o maestro escreveu num pedaço de papel: ;Água de beber foi no Catetinho. Para o Kleber, abraço, Tom Jobim;, documento que o engenheiro guarda no baú dos tesouros de suas histórias vividas.
Além de participar, ouvir e guardar histórias de mil e um dias da construção de Brasília, o engenheiro Kleber Farias Pinto ainda teve tempo de assumir incontáveis cargos em instituições públicas, de ser professor do Caseb, a primeira escola de ensino médio de Brasília, da Faculdade de Arquitetura da Universidade de Brasília (UnB), de escrever um livro de matemática, de ser cônsul honorário do Senegal e presidente da Associação dos Frequentadores do Aeroporto, título que recebeu por conta de suas visitas diárias à pista de pouso de Brasília. Era lá que ele podia ler os jornais que chegam nos voos vindos do Rio e de São Paulo. Kleber sabia quem estava chegando e saindo e gostava de bater papo e contar aos jornalistas que chegavam quais eram as mais recentes novidades do canteiro de obras. Até hoje essas histórias alimentam os mil dias de Kleber Farias Pinto.