Jornal Correio Braziliense

Cidades

Casa da Sopa garante alimento para famílias pobres em região próxima a Brasília

Iniciativa de cidadãos comuns, não vinculados a qualquer tipo de instituição governamental, assegura a alimentação de diversas famílias que vivem em condições de extrema pobreza nas proximidades de Brasília. O trabalho conta com apoio da Catedral Rainha da Paz

Quando a Kombi branca da Casa da Sopa surge nas ruas da Cidade Estrutural, as crianças saem de casa com um sorriso largo no rosto e uma certeza: naquele dia, elas terão pelo menos uma refeição. Às quartas, o carro traz o almoço preparado pelas voluntárias ligadas à Catedral Rainha da Paz. A fome é tanta que as pessoas, de diferentes idades, comem até com as mãos, em porções generosas capazes de encher a boca de uma só vez. A pressa em devorar denuncia a falta frequente de alimento. A distribuição começa pelo galpão dos catadores de lixo de cooperativas de reciclagem, na entrada da cidade, e vai até a Rodoferroviária. É servido arroz temperado com cebola, alho e açafrão, misturado à carne e, em outra panela, fica o feijão. Tudo fresco e cheiroso.

Todas as noites, é hora de servir a sopa feita de macarrão, arroz, legumes e carne. A comida é preparada em uma casa no Cruzeiro Velho por mulheres e homens que se habilitam a ajudar quem precisa. A cozinha é espaçosa e rodeada por armários com panelas grandes. Há 20 anos, o dinheiro para comprar a matéria-prima vem de doações e do dízimo da catedral militar recolhido especialmente para esse fim duas vezes, todo dia 25 do mês, data em que se homenageia a Rainha da Paz.

A Casa da Sopa é composta por 380 pessoas dispostas a cozinhar e levar o resultado do trabalho para Paranoá, Taguatinga e Itapoã, além da Estrututal (cidade na qual o Correio acompanhou a visita). Em cada dia da semana, um grupo de até seis voluntários entrega as doações. Às quartas-feiras são duas equipes, porque há almoço e jantar. São 15kg de arroz, 8kg de carne e 10kg de feijão por almoço e, em média, 120l de sopa a cada vez. No Paranoá são servidos 280l por noite ; quantidade suficiente para suprir as necessidades de até 100 moradores de rua ou de áreas carentes. Além de comida, os voluntários também recolhem roupas, calçados, brinquedos e cobertores para dar a quem não tem condições de comprar. As refeições são servidas em caixas de leite ou de suco reaproveitadas.

Quarta-feira, na hora do almoço, a Kombi esteve na Estrutural. A estudante de direito Janaína Marques, 25 anos, moradora do Sudoeste, dirigia o veículo. ;Ajudar me faz muito bem. Quando chego a um local muito pobre e pergunto como as pessoas estão e elas dizem que estão ótimas, mesmo naquela situação de miséria, eu aprendo a ver o mundo e a viver melhor;, revelou.

Janaína sai acompanhada pela engenheira civil Abigail Cristina de Almeida, 48 anos, moradora de Sobradinho, e por Núbia Ribeiro, 38, artesã e moradora de Taguatinga. ;Chego ao Cruzeiro antes das 7h para começar a preparar a comida. É um prazer grande demais ver a realidade de perto;, disse Núbia. ;Sair do conforto às vezes pode ser muito bom;, completa Abigail. As mulheres vão sozinhas e entram em locais inóspitos em busca dos mais necessitados.

A visita
Quando avistou o veículo, o catador de papel José Severino Soares, 51 anos, comemorou: ;Graças a Deus, chegaram nossos anjos;. O homem forte e negro de aparência cansada sai de casa, em Águas Lindas, às 5h, e vai para o galpão de coleta de resíduos. Ganha R$ 0,08 pelo quilo de papelão e R$ 0,20 pelo de papel branco. O salário não dá para a comida de todo dia. ;Se elas não trazem, a gente às vezes fica sem comer. Só vou fazer uma boquinha quando chegar em casa, depois das seis da tarde;, relata. Depois de lá, é hora de seguir para a área de chácaras da Estrutural. Ali a pobreza é ainda maior. As famílias esperam pela Kombi dentro dos barracos sem ter nada no fogão. Se as voluntárias não aparecem, dezenas de mulheres, homens e crianças ficam com fome até quando o destino deixar. No Setor Rural Lúcio Costa, perto do Setor de Inflamáveis, um grupo de 10 garotos não conteve a alegria. Muitos deles saíram de casa descalços e sem roupa, sujos de terra da cabeça aos pés, para receber o prato feito. Jéssica Carvalho, 17 anos, alimenta a filha Juliana, de 8 meses, com a comida que ganha. Os vizinhos dela também vivem assim.

Fome
A van também entra na área onde será construído o Setor Noroeste. Lá, vivem famílias em uma invasão, em meio ao mato alto. Nesse local, os talheres são as mãos sujas de terra. ;A gente não ia nem almoçar hoje. Talvez nem jantar. Amanhã também não sei. A gente só come pão quando acha embalado no lixo;, relatou Leidiane de Amorim, 22 anos, nenhum emprego e quatro filhos para sustentar. Entre eles estão a pequena Manuela, 6 anos, e Guilherme, 3, dois dos mais felizes em receber o arroz quentinho das mãos de Núbia, Abigail e Jaqueline.

A ajuda vai além da alimentação. A desempregada Edna Sebastiana de Oliveira, 24 anos, recebe ainda doações de roupas e brinquedos para os filhos, Diego, 3 anos, e Riam, 1. No dia 10 último, Diego foi premiado com um saco cheio de carrinhos e bonecos. Por um instante, a fome ficou de lado e a alegria tomou conta do olhar do menino encantado com os presentes. ;Meu marido trabalha, mas o dinheiro não dá para tudo. Não tinha nada no fogão para os meninos e a Kombi chegou. É um alívio;, disse a mãe. O próximo integrante da família Oliveira chega em breve. Edna está grávida e ainda não sabe o sexo do bebê. Mas torce para que ele venha ao mundo saudável, apesar da falta de condições em que vai viver.

;A maior recompensa é ver o sorriso de quem come depois de muito tempo sem saber quando a comida viria. É reconfortante;, definiu Jaqueline. Os mais carentes ficam satisfeitos. Os mais abastados ficam com a certeza de que saciar a fome alheia também pode alimentar a alma de quem se doa um pouco.

"A gente não ia nem almoçar hoje. Talvez nem jantar. Amanhã, também não sei. A gente só come pão quando acha embalado no lixo"
Leidiane de Amorim, 22 anos

O número
33 kg

Quantidade de comida distribuída no almoço