Não é todo dia que se encontra alguém que já enfrentou o câncer duas vezes e ri à toa, de graça, quase sempre até chorar. Mais difícil ainda é encontrar uma pessoa que suportou ter o braço direito amputado em razão da doença e leva a vida sem a afetação da autopiedade, muito pelo contrário. Esse alguém é Thaynnara Krystine Cordeiro da Silva Ramos e tem apenas 14 anos. As descrições clássicas não cabem no caso dela. A verdade sobre Thaynnara é que ela é flamenguista, ginasta, dançarina de um grupo folclórico, fã do Aviões do Forró e eterna apaixonada pela Aruc, escola de samba que frequenta desde que seu endereço era a barriga da mãe, Cristian Cordeiro da Silva.
A história de Thaynnara mudou quando ela tinha 9 anos. Um dia, sentiu fortes dores no braço direito. Um exame de raio-X feito no Hospital de Base constatou um tumor no úmero ; osso do braço ;, próximo ao ombro, e a biópsia diagnosticou um câncer. Encaminhada para o Hospital de Apoio de Brasília, Thaynnara foi submetida a quimioterapia, internações semanais e outros procedimentos durante dois longos anos. ;Praticamente passei a morar no hospital. Foi doído para ela. Minha filha era muito nova;, relembra Cristian. Quando os médicos anunciaram que a única chance de cura era amputar o braço direito de Thaynnara, Cristian não se segurou. ;Não aceitei. Quis uma segunda opinião e queriam me encaminhar para médicos de São Paulo. Mas como é que eu ia largar o meu emprego e mudar para um cidade onde não tenho ninguém? Viver às custas dos outros? Nem pensar!”, conta.
Por sugestão de colegas de trabalho, Cristian procurou o Hospital Sarah Kubitschek, referência em reabilitação de politraumatismos e ortopedia. O caso de Thaynnara era tão emergencial que, no mesmo dia em que a avó da menina, Sandra Cordeiro, levou os exames para entrar na lista de espera de consultas, Cristian recebeu uma ligação do hospital com o dia e a hora em que os médicos do Sarah conheceriam o caso de Thaynnara. O laudo, entretanto, foi o mesmo. Em menos de uma semana, Thaynnara foi operada e teve o braço e o ombro direitos amputados. Tendo que passar mais tempo em hospitais do que trabalhando, Cristian foi dispensada do emprego e dedicou-se integralmente aos cuidados com a filha, que ainda fazia quimioterapia. Foi então que a Associação Brasileira de Assistência às Famílias de Crianças Portadoras de Câncer e Hemopatias (Abrace) cruzou o caminho da família Cordeiro. A organização dava suporte financeiro e apoio psicológico. E apoio era o que Cristian realmente precisaria para aguentar o que viria a seguir.
Segundo desafio
Pouco mais de seis meses após a cirurgia, Cristian notou um caroço no pescoço da filha. A biópsia acusou outro tumor, mais uma vez maligno. Thaynnara voltou à sala de operações do Sarah. ;Da primeira vez, eu aguentei o tranco. Mas da segunda vez, não deu. Eu dizia à psicóloga que me acompanhava que preferia ver a minha filha morta a vê-la sofrendo daquele jeito. Mas eu sou guerreira. Fui levando e superei;, recorda Cristian. Mas Thaynnara não é qualquer menina. Ela respondeu bem à nova rodada de quimioterapia e, com a coragem e insistência necessárias, conseguiu vencer um segundo câncer. ;Eu saía pulando, correndo, toda vez que deixava o hospital;, diz Thaynnara.
O retorno para casa significou a volta para o samba. ;O lugar onde eu me sinto mais feliz é na Aruc;, assume, sorridente. Ela tem motivos para isso. É a xodó da escola. Até apadrinhamento do presidente de carnaval ela já ganhou. Desde que pisou pela primeira vez na avenida integrando a Ala das Crianças, quando tinha 7 anos, a pequena só perdeu um desfile. Neste ano, saiu pela segunda vez na ala das passistas, esbanjando samba no pé. ;Meu sonho é ser rainha da bateria;, ambiciona. Largou os planos de seguir uma determinada religião que proibia festejar o carnaval. ;O samba é mais forte;, assume.
É inevitável que o processo de ajustes ao novo corpo leve um certo tempo. Thaynnara ainda se sente um pouco envergonhada. A mochila de rodinhas, já que não pode carregar nada nas costas, é uma pedra no sapato. ;Ela pede para ajudar a fazer tarefas de casa. Adora lavar louça, e haja detergente!”, brinca a mãe. ;Já sei fazer ovo frito, arroz, brigadeiro;, garante Thaynnara. Nasceu destra, mas aprendeu a ser canhota e sua letra, como comprovou a reportagem, é muito bonita. Amigos, são muitos. Mas as tardes livres para brincar são poucas. Há três anos, a ginástica rítmica ocupa três tardes da semana. Ela já faz o solo e está se preparando para chegar às Paraolimpíadas.
Oficialmente, ela diz que quer ser advogada quando crescer. Mas a mãe trata de revelar os planos mirabolantes da filha: Thaynnara quer ser modelo, até já fez curso. ;A Gisele Bündchen é meu ídolo;, resume. Bem, no caso de Thaynnara, tudo é possível.