Jornal Correio Braziliense

Cidades

A silenciosa felicidade de ter ajudado a construir a capital

O paisagista Ney Ururahy foi chefe de gabinete de Israel Pinheiro, trabalhou na construção até ter um esgotamento físico e guarda como um bem precioso o orgulho de ter participado da saga brasileira do fim dos anos 1950

Aos sábados à tarde, quando sai para passear pelo Lago Sul, Ney Ururahy, 87 anos, experimenta uma satisfação partida. Surpreende-se, mais uma vez, com o privilégio de morar no Lago Sul. Grandes áreas arborizadas, pistas amplas, casas com quintal, um lago nas bordas, um silêncio sacramentado. Mas, ao mesmo tempo, se aflige e se pergunta: ;Como será a vida de quem mora em Ceilândia?;. Mesmo sem visitar as cidades satélites, Ururahy sabe que a utopia só se realizou para poucos. E isso o incomoda.

Ele diz que é um ;jardineiro envernizado;. Começou agronomia e arquitetura, não concluiu nenhum dos dois, montou escritório de paisagismo e trabalhava no Serviço de Expansão do Trigo, órgão público, até ser convidado a vir para Goiás. O nome ;Goiás; encantava os ouvidos de Ururahy havia tempos. O pai, Abelardo, que ele muito amava e admirava, havia participado da comissão que escolheu as primeiras colônias agrícolas do projeto Marcha para o Oeste, de Getúlio Vargas. O jovem Ney ouvia o pai falar com muito entusiasmo de um certo Bernardo Sayão e de um lindo lugar chamado Mata de São Patrício, onde a Colônia Agrícola de Ceres foi criada.

Daí que, quando o diretor-administrativo da Novacap, Ernesto Silva, seu concunhado, o convidou para ser o chefe da Divisão de Pessoal da companhia, Ururahy pensou em ;Goiás, Goiás, Goiás;. Imaginou que estaria bem na Mata de São Patrício e pensou que seria a chance de conhecer, finalmente, o lugar do qual o pai tanto falava. O espírito aventureiro e a perspectiva de que, em Brasília, ele poderia ;não ser apenas um número; o empurram para o cerrado. Era 1956, mas o jardineiro envernizado só veio a morar na cidade, com a família, em 1958. Nesses dois primeiros anos, fez ponte aérea, demorada e trôpega, entre Rio e Brasília.

Ligado nos jardins
Durante os anos da construção, o paisagista não teve tempo nem de sonhar com a Mata de São Patrício. Nem mesmo de olhar em perspectiva para o momento histórico que estava vivendo. ;Não dava tempo de pensar. Só pensávamos em fazer a cidade. Se eu tivesse pensado no que estava fazendo, estaria rico, mas esse também não era o meu projeto.; Os planos de vida de Ney Ururahy nunca deixaram de ser os de um ;jardineiro envernizado;. Árvores, arbustos, jardins, natureza são alimentos de primeira necessidade para o bravo candango.

Há outra fonte de onde Ney Ururahy extrai a força do seu viver: o orgulho de ter participado da construção de uma cidade. ;É uma felicidade divina ter ajudado a construir Brasília. Um sentimento delicioso o de poder dizer que fiz parte disso. Mas não é pra ficar contando por aí. É pra ficar dentro da gente.; O período entre 1956 e a saída de Israel Pinheiro da Prefeitura de Brasília ;foi um intervalo glorioso na minha vida de paisagista;.

Nessa glória de intervalo, Ney Ururahy fez os primeiros movimentos para que a Candangolândia surgisse. Chefe da Divisão de Pessoal, ele era responsável também pelos alojamentos da Novacap. Recebia, com frequência, bilhetinhos de Bernardo Sayão: ;Ururahy, dê 20 tábuas para o portador;. Eram candangos recém-chegados precisando de madeira para construir barracos. Decidiu-se então fixar uma área ao largo dos alojamentos e do galpão da Novacap onde os peões de obra pudessem erguer suas moradias mambembes. Tudo onde hoje é a Candangolândia.

De chefe de Pessoal, o paisagista virou chefe de gabinete de Israel Pinheiro, função que lhe permitiu conhecer o todo-poderoso presidente da Novacap de um modo que poucos conheceram. ;Ele tinha um coração do tamanho de um bonde. Tinha competência, era um líder fantástico e a agressividade escondia a enorme afetividade.; Mas Ururahy demorou a entender Israel como ele era. ;Sinto não ter percebido (na época) que ele era uma pessoa muito meiga por dentro e muito áspero na periferia;, disse o paisagista, em depoimento ao Arquivo Público do Distrito Federal.

Sem alarde
Ao contrário dos que enaltecem os sacrifícios que fizeram durante a construção, Ururahy pega o caminho contrário: ;Não sofri coisa nenhuma, não comi poeira. O pó era gostoso, era o caviar do cerrado;. Sua condição de chefe de gabinete do homem mais poderoso do canteiro de obras lhe impôs um ritmo de trabalho insano. Só à noite é que ele conseguia despachar com o chefe. Enchia a Rural Willys de processos e ia à Granja do Ipê para mais um turno de trabalho. No dia da inauguração, dirigindo de volta para casa, Ururahy sentiu-se mal. ;Não conseguia mais dirigir, não sabia o que eu tinha. Encostei o carro e pedi socorro nem sei como.; Um check-up no Rio de Janeiro deu o diagnóstico: esgotamento físico, como se designava o estresse à época.

Depois que Israel Pinheiro deixou Brasília, Ney Ururahy foi designado para uma função burocrática no governo do Distrito Federal, mas pediu demissão e deixou para lá 25 anos de serviço público. Voltou ao seu planeta de origem, o paisagismo. Foi ele que executou os jardins do Itamaraty, obra de Roberto Burle Marx. São dele, entre outros, os projetos de paisagismo do Hotel Tropical, em Manaus, e do Tambaú, em João Pessoa. Por esses dias, desenvolve projetos no Rio Grande do Sul e no Acre.

Lamenta que Brasília não aproveite o cerrado em seus jardins e áreas públicas. ;A cidade planejada, com arquitetura especial e grandes áreas verdes, não admite jardins meigos e acertadinhos. Nossos jardins pedem pequizeiros, copaíbas, ipês-brancos, roxos e amarelos, quaresmeiras, sucupiras, jatobás; que tão bem caracterizam com o seu desfolhamento as estações chuvosas e secas;, ele escreveu em texto de 1999.

Há mais de 20 anos, Ney Ururahy mora numa chácara do Lago Sul, imensa área verde nada suntuosa, monástica até, com pequenas construções em tijolo aparente, passeios em chão de pedrinhas, coreto de tijolinhos e um comedouro para passarinho feito de hastes finas de ferro, como uma flor. Antes de se mudar para essa quadra, o paisagista morou na QL 8. ;Fui o primeiro morador do Lago Sul;, ele conta. Do quarto, ele viu o lago se formar, dia após dia. Entende-se, portanto, a razão de tanto orgulho silencioso de ter estado aqui naquele tempo heroico.