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Os três renascimentos de Cleide

Ela derrotou o inimigo sorrateiro com força de leoa. No primeiro câncer, sangrou sangue de morte. No segundo, foi mutilada. No terceiro, quase viu o fim. Mas nunca desistiu de viver. Chorou escondida para não fazer sofrer a quem amava. Esta semana, embarca para Salvador e se jogará no carnaval da Bahia: "Quero beijar muito na boca"

Ela fala da vida com um encantamento que quase ninguém entende. Extasia-se com estrelas, até aquelas que mal aparecem no céu. Para diante de qualquer pôr de sol. Dá valor a coisa com que pouca gente se importaria. E aprendeu a não ter mais pressa. O relógio dela é acertado na velocidade que desejar. No começo da conversa, sentada no sofá da sala, ela diz: ;Eu não me permito sofrer mais por nada;.

Cleide Ferrari Sabino é uma mulher que foi duramente testada três vezes pela vida. Venceu com força de leoa três cânceres devastadores. Foi mutilada. Aos 35 anos, na luta contra mais um tumor maldito, olhou-se no espelho e viu um corpo que não era seu. Faltava pedaço, o símbolo da feminilidade. Sentiu-se incompleta. Inferior a qualquer mulher. Como ficar nua diante do homem que a chamava de sua? Quis chorar. Chorou escondida, sempre escondida. Chorou até as lágrimas aprenderem a virar riso. E decidiu que recomeçaria, mesmo dilacerada. Levantou-se como fênix. Criou os dois filhos. Formou-os. Trabalhou (e trabalha) como nunca.

Na próxima quinta-feira, completamente curada, ela embarca para Salvador. Passará o carnaval, pulando de felicidade, ao som da banda Chiclete com Banana. Ela se perderá na multidão. A filha de 25 anos e o filho, de 28, companheiros e cúmplices, estarão com ela. ;Ela tem mais pique que nós dois juntos;, fuxica a filha, a advogada Flávia Ferrari Sabino. E continua: ;Quando a gente menos espera, ela some no meio do povo. Só se vê o cabelinho loiro, longe de tudo. Foi assim das outras vezes...;

Mas a vida de Cleide nem sempre foi atrás de folia. Muito pelo contrário. Filha de um motorista e de uma dona de casa, ela nasceu em São José do Rio Preto (SP). Mais velha dos quatros irmãos, aprendeu desde cedo a dividir. E dividia o pouco que tinha. Principalmente comida. Num caminhão de mudança que partiu de São Paulo, o pai, a mãe e os irmãos embarcaram. Sacolejaram por dois longos dias. Ele disse à família que aqui teriam vida melhor. Todos acreditaram.

Era janeiro de 1971. Cleide tinha 12 anos. Pela primeira vez chorou de saudade. Saudade do pouco que tinha. Da casa modesta, mas de alvenaria. Aqui, foram morar num barraco de madeira, na QNB 11, em Taguatinga Norte. Tempos depois, mudaram-se para a QNA 41, já numa casa com paredes de verdade. Cleide, além dos estudos, teve que trabalhar. Habilidosa para números, aos 15 anos, já era caixa de loja. Aos 18, começou o curso de técnica de contabilidade.

Aos 19 anos, ela se casou. Juraram amor eterno. Osvaldo Ferrari, o pai motorista, vestiu roupa bonita no dia do casamento. Dirce Fachinetti, a mãe dona de casa, chorou. Cleide foi trabalhar como auxiliar de contabilidade no escritório do marido, também contador.

O primeiro
Mas ela sempre quis mais. Decidiu que estudaria pra ser advogada. Passou no vestibular e se formou em direito. Especializou-se em causas trabalhistas. O casamento seguia bem. Aos 21 anos, Cleide engravidou do primeiro filho, Fernando Emílio. A gravidez foi normalíssima. Teve festa no dia do nascimento do bebê. Do seio farto e jovem, jorrava leite bom. Fernando mamava com gosto. Só engordava.

Aos 25 anos, a segunda gravidez. Mais felicidade. Entre o terceiro e quarto meses de gestação, Cleide começou a sentir cólica e vômitos. Procurou um hospital, na Asa Norte. Internaram-na. Disseram que seriam sintomas da gravidez. Ficou em observação por quatro dias. Liberam-na. A gravidez inteira foi um suplício. Não engordava. E passou a sentir uma estranha dor do lado direito da barriga. Flávia nasceu.

Encantada com a menina bochechudinha, Cleide esqueceu-se da dor do lado direito. Mas, perto de a filha completar um ano, a dor voltou com mais intensidade. Uma ecografia abdominal suspeitou que ela teria uma massa com líquido. Suspeitaram de um possível terceiro rim. As crises de vômito e diarreia só aumentavam. Uma cirurgia foi marcada às pressas. Pela orientação de um cunhado médico, Cleide fez o procedimento num hospital público. ;Ele me disse que ali, no HUB (Hospital Universitário de Brasília), estariam os melhores profissionais de Brasília. Confio nele;, ela diz.

Abriram a barriga de Cleide de ponta a ponta, para explorar a estranha massa. Aquela gente de jaleco branco tremeu. Era um tumor enorme, de 7cm, localizado no intestino grosso.

Retiraram 50% do órgão. A biópsia só confirmou. Era câncer. ;Nunca contei isso, mas um médico me disse que ela não teria mais que dois meses de vida. Eu ajoelhei, chorei muito e pedi a Deus que minha filha não sofresse, que me desse força pra criar os meus netos;, revela Dirce, 70 anos, enxugando as lágrimas. Não foi preciso quimioterapia. Os anos seguintes se seguiram com exames regulares, vigília e promessas da mãe.

O segundo
Passaram-se nove anos. Dezembro de 1993, perto do Natal. Cleide sente ;um carocinho; na mama direita. Não doía, não incomodava. Mas estava ali. ;Não valorizei muito;, admite. Mas foi ao médico, que pediu uma ecografia mamária. Nada foi revelado. Corre o ano de 1994, Copa do Mundo. O casamento, na mesma época, entra em crise. O homem com que se casara aos 19 anos saiu de casa. O mundo de Cleide se partiu ao meio. Ela pegou o carro e dirigiu até o Centro Clínico Sul, na 716. Entrou em uma clínica e pediu, por conta própria, uma mamografia com indicação de biópsia.

O ;carocinho; era maligno. Indicação de mastectomia radical (extirpação da mama). Mais uma vez, o cunhado médico achou melhor fazer na rede pública. No Hospital Regional de Taguatinga (HRT) foi realizada a cirurgia. Horas depois, Cleide acordou, toda enfaixada. Dias depois, ela retira a faixa. E se vê pela primeira vez. ;Era um buraco. Chorei escondida, no banho, longe dos meus filhos. Fiz terapia para suportar.;

No dia em que foi desenrolar a faixa que protegia o peito, o médico, gelado como iceberg, nada lhe disse. ;Ele me deu apenas bom-dia e saiu, sem uma só palavra.; Cinco dias depois, segurando o dreno, Cleide estava trabalhando. Começaram as sessões de quimioterapia. Seis ciclos a cada 21 dias. As veias da mão esquerda secaram. O cabelo raleou, mas não chegou a cair totalmente. Aguentou os terríveis enjoos. A advogada se fez forte. ;Saía do hospital direto pro tribunal, para mais uma audiência. Alguns colegas nunca souberam que tive câncer. Vão saber agora...;

Em julho de 1995, Cleide completou 36 anos. A mulher que juntou toda a família (pai, mãe e irmãos) com força de homem, criou os filhos e construiu um invejável patrimônio, foi a São Paulo. Fez a reconstituição da mama no hospital particular Albert Einstein. Antes, porém, encontrou um novo amor, mais jovem 10 anos. Na véspera da viagem, o rapaz lhe disse: ;O que é uma mama diante da mulher que você é?; Ela foi. Queria se sentir completa de novo. Voltou inteira.

O terceiro

Esse homem mais jovem amou a mulher mais velha com amor de paixão. ;Foi uma linda história que durou nove anos. Vivemos na minha casa. Éramos uma família;, conta. Chega o réveillon de 1998. Todos viajam para Ilhéus (BA), onde ela tem uma casa. Lá, começam os enjoos e a diarreia intensa, os mesmos sintomas que sentira na gravidez. Ela sabia que aquilo não era bom. Nem assim deixou de sorrir. À meia-noite, fez pedido olhando a lua que tocava no mar.

De volta a Brasília, ela procurou um proctologista, que pediu uma colonoscopia (exame que vasculha o intestino). Não deu nada. Os sintomas pioram. Ela, mais uma vez, bateu, por conta própria, à mesma clínica na 716 Sul. Quis fazer um exame mais invasivo do que a colonoscopia. Ligou pro médico de confiança, que autorizou. Ela tinha razão. Era o terceiro câncer, o segundo de intestino, desta vez do lado esquerdo. E já sangrava. Sozinha, dirigindo de volta pra casa, ela chorou. E disse a si mesma: ;Agora esse bicho me deu uma rasteira, mas não vai me vencer;.

O médico lhe explicou que esse era mais grave que o primeiro. Chorou, novamente escondida. E pediu apenas que a cirurgia fosse feita depois do carnaval. Partiu para Salvador com o homem que amava. Em março de 1998, entrou no centro cirúrgico do HUB. Quase 12 horas de cirurgia. Retiraram o restante do intestino grosso. E fizeram uma ligação interna do esôfago para o reto. Toda sexta-feira, por meio de um cateter, recebeu doses de quimioterapia durante um ano. E jurou a si mesma que não morreria daquela doença.

A redenção
O relógio de Cleide prossegue com a intensidade dos seus sonhos. Correram 12 anos. Ela completou 52. O amor partiu há nove meses. Resolveu viver outra história. Ela chorou de paixão. Sentiu saudade. A cama ficou vazia. Mas decidiu que sobreviveria mesmo sem ele. Investiu cada vez mais em si própria. Malha três vezes por semana, com personal ; faz isso há 10 anos.

Trabalha como nunca. Comprou uma bicicleta entupida de marcha. Quer fazer trilha radical. Treina pra isso. E conta as horas para viajar com os filhos para Salvador. Vai se jogar no axé. Comprou camarote. Pulará nos três blocos mais importantes. ;Todos os dias, agradeço a Deus pela permissão de viver e cuidar dos meus filhos;, diz ela, em lágrimas de redenção. E avisa, como um alento a quem vive hoje dramas parecidos: ;A doença não mata. O que mata é o medo de não enfrentá-la. E não se pode perder a fé, nunca;.

Flávia, a filha mais nova, também chora: ;Nunca vi tanta força, tanta animação. Ela é meu exemplo;. Fernando Emílio, o mais velho, emociona-se: ;Tinha13 anos quando ela teve o segundo câncer. Pensei que minha mãe não fosse mais suportar. Ela é minha heroína;.

E Cleide? Ainda limpa as lágrimas que escorrem pelo rosto bonito. Mas prefere o sorriso de vida. É a sua identidade. Diz que nunca pensou na morte. E brinca, como alguém que viu o pior e foi testada três vezes por um inimigo sorrateiro e impiedoso: ;A morte deve ser boa, como um orgasmo intenso. Digo isso porque, de tão boa, ninguém voltou pra contar. Mas, se depender de mim, eu prefiro adiar esse orgasmo eterno...;

Planos urgentes? ;Eu quero mais é arrumar um namorado no carnaval de Salvador e beijar muuuuito na boca.; Cleide parece mulher de ficção. Mas é tão real que sangrou, foi mutilada, sangrou novamente e agora só quer viver como menina que se apaixona pela vida e se lambuza de felicidade. Todos os dias.