Jornal Correio Braziliense

Cidades

Filha mais velha de importante engenheiro da construção de Brasília lembra do pai

Telma conta como Joffre Mozart Parada era generoso, calado, obcecado pelo trabalho, e como nunca reinvindicou honrarias por tudo o que fez por Brasília

Se dependesse dele, seu nome teria sido esquecido. Como não depende, seu nome vem sendo relembrado com o cuidado que merece. O engenheiro Joffre Mozart Parada é um dos mais importantes bravos candangos da história da construção de Brasília. Filho de maquinista, goiano de Vianópolis, trabalhou na comissão que demarcou e mapeou o Distrito Federal. Não muito mais tarde, foi ele quem determinou a exata localização do Plano Piloto e definiu as principais coordenadas do projeto de Lucio Costa. O engenheiro morreu de infarto em 1976, aos 52 anos.

A filha mais velha, Telma, 54 anos, era uma brava candanguinha perto de completar 2 anos quando deixou Goiânia na noite de 31 de março de 1957, com o pai, a mãe, Mercedes, e a irmã por parte de mãe, Gláucia. Quando 1; abril amanhecia, a família Parada entrava numa pequena casa de madeira que ainda estava sendo construída na Rua do Sossego, na hoje Candangolândia. Dois meses mais tarde, as filhas gêmeas de Joffre, Márcia e Vânia, vieram para Brasília e a família ficou completa.

O pai das quatro garotas era um homem obcecado pelo trabalho. ;Nunca vi meu pai se divertindo. Em casa ele era muito calado e vivia trabalhando o tempo todo.; A mulher de Joffre, Mercedes, bela goiana de olhos verdes, ajudava-o nos desenhos, datilografava memoriais, assistia-o nos instrumentos de medição e análise de fotogrametrias. ;Tudo sob orientação dele, mas minha mãe era danada, sempre estava fazendo alguma coisa.; Dona Mercedes, 85 anos, teve uma isquemia, sofre de insuficiência respiratória e vive ligada a aparelhos de oxigenação.

Engenheira da Novacap, como o pai, Telma guarda em casa o pouco que restou do imenso tesouro de documentos e aparelhos que Joffre Parada deixou em um galpão no Park Way. É triste a história do destino do arquivo de um dos mais importantes e decisivos engenheiros da construção de Brasília. Passado algum tempo da morte do marido, dona Mercedes perguntou à filha o que fazer com a pilha de papéis, mapas, instrumentos, aparelhos e pedras. Muito jovem, Telma não tinha ideia da preciosidade histórica que a família tinha em mão e não deu muita importância ao assunto.

Acervo
Dona Mercedes decidiu então separar alguns aparelhos e instrumentos de campo, entregou-os à filha aluna de engenharia e procurou o Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal e a Universidade de Brasília para oferecer o acervo do marido. O primeiro alegou falta de espaço físico e a UnB não deu importância à oferta, diz Telma. Em meio a esse dilema, dona Mercedes recebeu a visita do fotógrafo Gabriel Gondim, obcecado colecionador de objetos relacionados à história de Brasília. ;Gondim pegou o que quis;, conta a engenheira. Entre o que levou, estava a caderneta na qual Joffre anotou a demarcação do Plano Piloto. O fotógrafo morreu em 1994, e os herdeiros insistem em vender o acervo, por um preço que, na última oferta, estava em R$ 3,8 mil. Corre na Justiça uma ação pedindo a restituição da caderneta à família por se tratar de um patrimônio histórico.

Os documentos que estão à venda pertenceram a um homem que não tinha nenhuma ambição de amealhar patrimônio. ;Meu pai entregava o envelope do salário dele para minha mãe e quando precisava de dinheiro, até pra comprar cigarro, pedia a ela.; Seus feitos na demarcação do Distrito Federal, quando ainda morava em Goiânia, depois na construção de Brasília e mais tarde como secretário de Obras Públicas e de Serviços Sociais, do governo Wadjô Gomide (1967/1969), não resultaram em mais conforto para a família nem em conta bancária mais rechonchuda.

No tempo em que Joffre foi secretário de governo, a família evitava participar das reuniões sociais do alto escalão porque ninguém tinha roupa para se apresentar nos eventos. ;Minha mãe sempre arranjava uma desculpa, porque não tínhamos condição financeira para participar dos chazinhos. A gente tinha um sofá rasgado e nós três (as três irmãs mais novas) usávamos as roupas uma da outra. Vivíamos uma vida muito regrada.; Telma conta que boa parte do salário do pai ia para o pagamento de terrenos que dona Mercedes o fizera comprar. ;Minha mãe foi muito pobre, como meu pai. Ela queria deixar uma casa para cada uma das quatro filhas, então o obrigou a comprar os lotes;, conta.

Dona Mercedes pediu licença e foi à luta. Criou porcos, fez linguiça e, depois que o marido comprou um pedaço de terra em Luziânia, passou a vender laranjas do próprio pomar. ;Minha mãe não tinha medo do trabalho. Meu pai era apaixonado por ela. Morria de ciúme, mas mesmo assim ela dava um jeito de trabalhar.; Como era uma mulher goiana nascida na primeira metade do século 20, dona Mercedes dava um jeito de ganhar uns trocados e ao mesmo tempo cuidar do marido. ;Ela punha a roupa na cama pra ele vestir, estava em casa na hora do almoço e, quando ele saía, voltava a percorrer os mercados para vender as laranjas.;

Casa cheia
Joffre e Mercedes eram primos em primeiro grau, filhos de duas irmãs. Na infância e parte da adolescência, moravam na mesma casa, mas o primo era, aos olhos da prima, apenas um garoto chato que a vigiava o tempo inteiro, como Mercedes contou ao Correio em novembro de 2006. O tímido Joffre nunca se declarou à prima. Ela se casou com outro, teve uma filha, Gláucia, ficou viúva e talvez ele não tivesse tido coragem de ir atrás do que queria, se uma velha amiga não o tivesse desafiado: ;Agora você vai finalmente se casar com a Mercedes, né?;.

Quando Joffre Mozart Parada morreu, em 9 de dezembro de 1976, a família dele pôde ter então uma ideia do quanto o pai era admirado e respeitado. ;Tinha tanta gente e tanto carro que não coube no cemitério. Durante muito tempo, ficamos recebendo telegramas e cartas de gente de todo o Brasil lamentando a morte de meu pai.; O homem retraído, que gostava mais de ouvir do que de falar, que nunca reivindicou reconhecimento, que não se preocupava em ficar rico, era generoso com todos quantos dele se aproximavam.

Telma lembra que, no tempo em que moravam na 706 Sul, a casa vivia com as portas abertas. ;As pessoas entravam, tomavam café, liam o jornal, conversavam com o papai e saíam pela porta dos fundos em direção à W3. Nossa casa era uma espécie de caminho. A gente cozinhava um saco de arroz de 60 quilos por mês. Havia não sei quantas garrafas de café e sempre tinha gente hospedada em casa.; Nos primeiros tempos de Brasília, as meninas tinham vergonha do sobrenome Parada ; pelas gracinhas que tinham de ouvir das outras crianças. Hoje, as quatro filhas, os 11 netos e os 13 bisnetos de vez em quando ouvem alguém perguntar: ;Você é parente do Joffre Parada?;. Segue-se um rosário de elogios. A Brasília de quase 50 anos está redescobrindo um de seus mais importantes candangos.