Uma história absurdamente sensacional. Conhecer Iá Oberlaender é como viajar. Uma viagem de ensinamento, emoção, candura, força e talento. Uma viagem no que há de melhor do ser humano. E ela só se permitiu revelar todo esse talento aos 65 anos de idade, depois da viuvez. Agora, aos 94, a mulher de olhos de quem acolhe e voz mansa, quase baixinha, faz sua primeira exposição individual. É a consagração. Mais que isso. É o reconhecimento de uma artista fora de série. ;Artista, eu? Não, meu filho. Não tem nada disso, não;, ela diz, simplesinha como os grampos que seguram seus cabelos cor de neve.
Rio de Janeiro, dezembro de 1915. Na Tijuca, aos sete meses, apressadinha e com parteira, nasce Maria da Conceição Oberlaender. Pais brasileiros, avô alemão e avó suíça, era a mais moreninha da família de 12 irmãos. Logo, os mais velhos a apelidaram carinhosamente de Crioulinha. Mas aí, uma irmã, mais nova dois anos, tinha dificuldade em chamá-la de Maria. E começou a dizer simplesmente Iá. Pronto. Maria deixava de existir. Iá nascia para sempre.
Da Tijuca, a menina se mudou para Copacabana. ;Fui criada na praia, tomando banho no mar com meus irmãos. A gente morava na Rua Santa Clara, 103. Naquela época, passava carro de boi pela rua;, conta, com os olhos de quem sente o cheiro do passado. Na escola, Iá gostava de desenhar. ;Meu mapa era o melhor.; Mas, um dia, a professora pediu para que a turma desenhasse um mamão cortado com as sementes à mostra. ;Chorei no fim da fila. Achava que não ia conseguir. Aí, a professora me passou uma lição de moral. Ela me disse pra eu nunca dizer, antes de tentar, que não sabia fazer...; Foi a primeira certeza de que, pra tudo, bastaria o primeiro passo.
Iá se casou aos 24 anos, em 1939. Moça prendada, aprendeu, ainda na casa dos pais, e com aulas particulares, a bordar, costurar e cozinhar. Era a arte da menina carioca daquele tempo. Sebastião José Araújo, o marido comerciante, cinco anos mais velho, era só amor. Não havia um único dia que não lhe trouxesse flores da rua. ;Foi o homem que amei. E ele me amou muito.; Ela o chamava de Zuca. Ele, de querida. Ela tomava seu chopinho. Ele, suco. Nasceram os dois filhos do casal. E a vida seguiu.
Em 1962, Sebastião e Iá deixaram o Rio de Janeiro. Os filhos já moravam aqui. Ela contava 49 anos. Ele, 54. A vida continuou seguindo. Aqui, Iá virou avó em tempo integral. Sebastião, anos depois, adoeceu. E ficou oito meses internado, lutando contra um câncer de pulmão. Iá mudou-se para o hospital. Nos momentos em que ele dormia, voltava a ser a menina que gostava de desenhar na escola. E rabiscava, a lápis, retratos que via. Uma paisagem.
Era o seu passatempo. Sebastião gostava. Incentivava a mulher a fazer mais. Um dia, ela desenhou um rosto. E escreveu, em cima do papel: ;Enquanto eu fico com meu Zuca, pinto sem saber, para matar o tempo;. Iá quis arrancar a dor do marido. Mostrou-se forte diante dele. Chorava escondida. Pediu a Deus que ele não partisse. ;Fiquei com ele até acabar;, ela diz, com os olhos bem longe da sala de sua casa.
Artista
Com a morte do homem de toda a vida, Iá dedicou-se aos netos, que cresciam e lhe dariam bisnetos depois. Um dia, porém, teve um estalo. Por que não fazer pintura, dedicar-se a um curso? Em meados dos anos 80, ela leu no jornal um curso de pintura em porcelana. Nem hesitou. Bateu à porta do ateliê de Vitória Ferreira. Aprendeu técnicas de biscuit e falso biscuit, pintura clássica e chinesa. Começou a fazer suas primeiras peças.
Mas Iá queria mais. Desejava desenhar. E matriculou-se no curso de desenho da mestra Iolanda Giglio Veloso. Tinha curiosidade para saber como se faziam retratos e paisagens, usando diferentes técnicas. Surpreendeu a todos. Fez coisas sensacionais para uma aluna de 65 anos de idade. ;A professora me chamou de artista;, conta. Era o fim da década de 1980. Iá entrou para a Associação de Pintores de Porcelana de Brasília. Começou a ensinar em casa, na 705 Sul, o que aprendera com suas professoras.
Vieram algumas exposições coletivas. Foram mais de 30. Havia uma ou outra peça dela aí. Anonimamente, os prêmios, as condecorações, os certificados começaram a aparecer. Iá se soltou. Pintava por nove horas seguidas. Mas, ainda assim, nunca se considerou artista. Gostava mesmo era de cozinhar para os netos e agora bisnetos (ainda gosta).
A vida, inexoravelmente, andou. Acabaram os anos 1980. Venceram os anos 1990. Chegaram os anos 2000. A casa de Iá se encheu de obras de arte ; tanto de porcelana quanto de pinturas. Ela as criava para presentear os filhos, netos e amigos. ;Eu vivo cada coisa que faço. Se tiver que uma peça, vendo com pena. Prefiro dar.;
Inspiração de Deus
No fim do ano passado, Iá, perto de completar 94 anos, adoeceu. Uma diverticulite (;o nome é chique, né, meu filho?;) a deixou dois meses internada num hospital. Ao sair, forte como um leão, surpreendendo mais vez os médicos, foi convidada para fazer um exposição individual na Biblioteca Nacional de Brasília. ;Tentei tirar o corpo fora. Achava que não tinha capacidade.; A família incentivou. O curador, Nando Cosac, também. Iá aceitou o maior desafio de sua vida. Juntou tudo que já tinha feito, catou peças que estavam nas casas dos filhos e disse que faria.
Duas semanas antes, produziu o derradeiro trabalho. Reproduziu, de uma foto que viu numa revista, a mão de um homem adulto segurando as pernas de uma criança. É como se fosse o recomeço, a renovação da vida. É como Iá se sente, aos 94 anos: sempre recomeçando. De onde vem tanta inspiração? ;De Deus, meu filho. É o que me faz viver até hoje;, ela responde. E brinca, às gargalhadas, com um bom humor invejável: ;Minha mãe morreu com 54 anos, de derrame, depois de saber que minha irmã ia se separar do marido. Hoje, do jeito que vai o casamento, não sobraria uma mãe;.
Na exposição, com mais de 30 trabalhos, o homem de rosto tatuado (reproduzido de uma revista) parece seguir o visitante com os olhos. A governanta de óculos e olhar enigmático (seu quadro preferido) é fantástico, de tão realista. As rugas no rosto e nas mãos da velha senhora lendo impressionam. E as muitas porcelanas, queimadas num forno de 800 graus, são verdadeiras obras de arte.
A convite do Correio, Iá voltou à biblioteca (estava lá na abertura, há 10 dias). Explica suas obras. Olha com admiração para cada peça. Logo na entrada, uma foto chama atenção: Iá aos 20 anos, em 1935, de cabelos negros à altura dos ombros, usando um vestido de costas seminuas. ;Era a moda da época.; Depois, emociona-se: ;Como o tempo passou, meu Deus!” Logo emenda: ;O maior ensinamento da vida é saber viver;.
Não tem como não ficar boquiaberto com o trabalho dessa mulher de 94 anos. Em cada peça, emoção maior. A certa altura do passeio, ela pergunta, com aquela vozinha de ninar: ;O que você achou, meu filho?;. Respondo-lhe que fiquei engasgado. É a mais pura verdade. Ela devolve: ;Não é muito carinho por mim, não?; Mesmo que continue nem acreditando, Iá é uma artista genial. Umas das personagens mais deslumbrantes e comoventes que tive o prazer de encontrar.
Vá correndo
800 graus de energia e delicadeza. Porcelanas e pinturas de Iá Oberlaender, no hall de exposição da Biblioteca Nacional de Brasília (BND), 2; andar. Hoje e amanhã, das 9h às 19h. Sábado e domingo, das 9h às 18h. Informações: 3325-6257. Entrada franca.