Jornal Correio Braziliense

Cidades

Filho de Bernardo Sayão viu a construção da capital

Adolescente, ele acompanhava o pai em voos sobre o cerrado onde Brasília seria construída. É testemunha da força e da alegria de um herói

Nos anos 70, Bernardo Carvalho de Araújo quis comprar uma fazenda em Formosa, Goiás. O dono da propriedade morava em Jataí, no sudoeste goiano. O candidato a comprador venceu 535 quilômetros, conheceu as terras, perguntou o preço e disse que tinha interesse nelas. Mas avisou que era de Brasília e que só podia oferecer como prova de que era idôneo a Carteira de Identidade.

Tirou o documento do bolso e o entregou ao jataiense. ;Como? Você é filho de Bernardo Sayão? Não acredito!” A mulher do fazendeiro tomou a frente: ;Seu pai tomou café nesta cozinha, e eu dancei com ele na campanha (para vice-governador de Goiás) em 1954;. Um dia depois, Bernardo voltava para Brasília com a escritura da fazenda em seu nome. ;Não paguei nem as despesas de cartório.; Só depois de chegar à capital é que o dinheiro da compra foi remetido aos ex-proprietários.

Tem sido assim na vida de Bernardo desde que, adolescente, voava no bico do Folk Wulf acompanhando o pai na abertura da pista de pouso onde Juscelino Kubitschek desceu para a primeira visita ao local onde a nova capital seria construída. Quase nunca, Bernardo consegue ser apenas um goiano de Jaraguá, criado em Brasília, fazendeiro em Formosa. Pelo menos uma vez por dia, ele é reverenciado em nome do pai, Bernardo Sayão Carvalho de Araújo.

;Nunca digo de quem sou filho. Mas quando alguém fica sabendo, muda da água pro vinho. É impressionante. Principalmente de Anápolis para cima. Não existe uma cidade na rodovia Belém-Brasília que não tenha uma estrada de nome Bernardo Sayão;. A força do nome do pai acompanha o filho desde sempre.

Bernardo filho era muito pequeno quando o pai fundou a Colônia Agrícola de Ceres, no começo dos anos 1940. Suas lembranças mais vívidas são da construção da nova capital. Entre 1956 e 1957, Bernardo Sayão foi o único diretor da Companhia Urbanizadora da Nova Capital (Novacap) que efetivamente se mudou para Brasília, além do presidente da empresa, Israel Pinheiro. Os demais vinham e voltavam para o Rio de Janeiro.

Depois que Juscelino o convidou para ser diretor da Novacap, Bernardo Sayão ligou para a mulher, dona Hilda, que morava em Goiânia, e avisou: ;Arruma as malas que amanhã cedo um caminhão vai aí buscar a mudança;. Com ele era assim. Tudo para agora e já.

Os Sayão (dona Hilda e os filhos Fernando, Bernardo, Lia e Lilian) foram morar numa pequena casa de madeira numa rua à qual o engenheiro deu o nome de Rua do Sossego, tudo o que ele não tinha. Nos primeiros meses, a família ficava em Goiânia durante a semana e vinha para a Candangolândia aos sábados e domingos ; oito horas de jipe para ir e outras oito para voltar. No começo de 1957, mudaram-se definitivamente para Brasília. As crianças foram estudar na escola que o pai mandara construir com sobras das madeiras das obras do Palácio da Alvorada, e Sayão foi abrir a Cidade Livre e organizar o modo de vida dos primeiros candangos.

;Ele era muito alegre, muito forte. Onde chegava, aglutinava simpatia. Era persistente. Quando tinha um projeto, ficava cego para as outras coisas;, lembra Bernardo filho. Menos para a família e para os amigos. Com razoável frequência, por volta das 6h, ele acordava os filhos, os amigos dos filhos, os filhos dos amigos dele, punha todos na Rural Willys e os levava para mergulhar na barragem da Granja Tamanduá, uma das que surgiram para servir de moradia aos diretores da Novacap. ;Uma das coisas de que ele mais gostava era de mergulhar nos rios. Pra onde ia, levava um calção;.

Quando 1958 chegou, Bernardo Sayão trocou o projeto da construção de Brasília por uma aventura muito mais arriscada: abrir a rodovia Belém- Brasília. De pronto, percebeu que as máquinas eram vagarosas para derrubar uma castanheira, por exemplo. Decidiu então que essa era uma tarefa para homens. ;Queriam fazer uma concorrência internacional, porque dizia-se que o Brasil não tinha competência para abrir uma estrada na selva. Meu pai botou três tratores emprestados do Dergo (Departamento de Estradas de Rodagem de Goiás), um paralelo ao outro, e mandou que eles abrissem as picadas, um quilômetro por dia. ;E o tratorista que olhar pra trás está demitido;, ele dizia.; E ria, gargalhava, como faz o filho ao contar a história.

Roxo de tristeza
Até que na madrugada de 16 de janeiro de 1959, Bernardo filho, os irmãos e a mãe foram acordados na casa da Rua do Sossego com a notícia de que o desbravador de estradas havia sofrido um terrível acidente. Dona Hilda sentiu que era muito mais grave: ;Ele morreu?;. Desse dia em diante, Bernardo Sayão deixou de ser um homem admirado para ser um herói brasileiro e sobre ele começaram a surgir lendas, como cabe a alguém que expande as qualidades que um ser humano pode ter. ;Meu pai era capaz de se reunir com os diretores da Novacap e depois almoçar marmita com os candangos. Pra ele era a coisa mais natural do mundo.;

Pela primeira e única vez durante os três anos e 10 meses da construção, não se ouviu o ronco de nenhum trator, o martelar de nenhum prego. Toda a cidade parou para se despedir de seu herói. ;Depois que nos avisaram da morte do meu pai, não me lembro mais de nada. Tinha gente demais. Mas uma coisa eu guardei: foi o discurso do candango. Depois que todo mundo falou, chegou a vez do Juscelino. Quando ele terminou de falar, um candango de roupa azul, carregando três flores do cerrado nas mãos, se aproximou e pediu a palavra: ;Presidente, o senhor me dá licença?;. O cerimonial tentou afastá-lo, mas Juscelino não deixou. Cada flor que trazia nas mãos tinha uma cor. Só me lembro de ele dizer que a roxa representava o sentimento dos candangos. Depois que ele terminou seu discurso, ficou aquele silêncio. Nunca me esqueço.;

Com a morte do pai e do marido herói, a família Sayão percebeu que estava órfã de afeto, de proteção e de patrimônio. O engenheiro dos muitos feitos não se preocupara em engordar a conta bancária. Não tinha carro, não tinha casa, não tinha ações, tinha apenas uma fazenda em Goiás. ;No primeiro mês depois da morte dele, não tínhamos dinheiro para comer, mas nunca faltou nada pra gente. Aonde a gente ia as portas se abriam com enorme facilidade.;

O nome mítico passou a proteger os Sayão até que eles pudessem recomeçar a vida. Os dois filhos mais velhos, Fernando e Bernardo, foram trabalhar na Rodobras, a empresa que construíra a Belém-Brasília. Depois, foram admitidos na Caixa Econômica Federal. Dona Hilda foi trabalhar com dona Sarah Kubitschek nas Pioneiras Sociais. A família passou a receber pensão. Bernardo filho não se esquece do dia em que um funcionário do pai, Gaúcho, veio de Goiânia e deixou uma Rural Willys verde, de teto branco, na porta da casa dos Sayão. ;Dona Hilda, é pra vocês. Vocês não têm carro.; Dona Hilda morreu em 2002.

Bernardo Sayão deixou seis filhos. Lea e Lais, do primeiro casamento. Fernando, Bernardo, Lia e Lilian, do segundo. Cinquenta e um anos depois de sua morte, o engenheiro da floresta, das estradas e dos rios ganhou 13 netos e 18 bisnetos (desses, 17 são mulheres). Exceto Lea, Lais, Lilian e seus filhos e netos, os demais moram em Brasília. ;Temos de cuidar muito bem desse nome;, diz Bernardo filho. ;Meu pai era um idealista, tinha uma visão estratégica para o desenvolvimento do Brasil, isso é o mais importante de tudo.;