Expansão urbana, aumento no número de carros e desmatamento para construção de vias maiores. Nada disso passa incólume no meio ambiente. A natureza começa a cobrar a conta dos brasilienses. A vingança vem quente e seca. Ela está no ar, seja de dia ou à noite. É o calor. A cada década, a temperatura só aumenta no Distrito Federal. Os últimos 10 anos foram os mais abafados da capital ; aproximadamente 1;C mais quentes em relação à média histórica registrada pelo Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) (1), desde quando se instalou no Planalto Central, em 1961.
De 2000 a 2009, a média ficou na casa dos 21,4;C, o que representa um aumento de 0,8;C em relação ao que se media historicamente (2) na cidade. A estatística fica arredondada quando se verifica a média mínima. Até 1999, as menores temperaturas giravam em torno de 16,1; C. De 2000 a 2009, ficaram em 17,1; C, em média. Os números foram levantados do meteorologista Francisco de Assis Diniz. Um grau pode até parecer insignificante, mas, segundo o especialista, já é sinal de alerta. ;Qualquer aumento da temperatura média provoca mais situações extremas, como secas e tempestades;, afirma Assis Diniz.
Foi nos últimos 10 anos que os termômetros candangos chegaram às mais altas temperaturas. O dia mais quente da história ainda está fresco na memória dos brasilienses, principalmente dos mais calorentos. Foi em 28 de outubro de 2008, quando o DF enfrentou uma seca severa, de 123 dias, e o Inmet registrou 35,8;C ; algo inédito. Superara até os 34,5;C de 12 de outubro de 1963, o antigo recorde. A estiagem de 47 anos atrás, contudo, continua insuperável. Foram quase seis meses sem um mísero pingo d;água do céu, somando, ao todo, 164 dias.
O sol também esteve implacável em 2007. Num ranking (veja quadro abaixo) com as cinco maiores temperaturas já verificadas, três ocorreram naquele ano, todas na casa dos 34;C, quase empatando com a marca de 1963. O recorde da década de 1960 foi uma exceção. Um caso excepcional, provocado por uma grande massa de ar quente que se instalou sobre o Planalto Central.
Naquela época, a paisagem de Brasília era muito mais poeira e descampado do que os prédios e os carros dos dias atuais.
O agricultor Raimundo Pereira da Costa, 73 anos, reclama das mudanças do clima do DF. Ele deixou o úmido litoral do Piauí para ganhar a vida no Planalto Central há 44 anos. Com o passar do tempo, sentiu o aumento da temperatura e os reflexos disso nas colheitas de milho, mandioca e feijão. ;A água da chuva faz falta. E sentimos cada dia mais o calor e a seca. Às vezes, não consigo trabalhar no meio do dia por causa do sol forte demais. Na semana passada, tomei banho de madrugada para conseguir dormir;, conta. Em breve, Raimundo voltará com a família para a terra fértil e úmida às margens do Rio Parnaíba.
A Chácara Santa Bárbara, de 10ha no Arapoanga, é toda irrigada. ;O agricultor que não tiver irrigação não vai colher mais nada hoje. A agricultura no DF se transformou em um segredo;, explica. Ele lembra da época em que o clima para a plantação era favorável e os vegetais recebiam água da chuva por 15 dias consecutivos. ;Agora, passa três dias sem chover e morre tudo;, lamenta. Nestes 24 dias de 2010, Raimundo já perdeu o plantio de milho graças à falta de chuva. ;O prejuízo se reflete na família. Tenho que comprar um sapato para a filha, roupa para o filho, comida. E o agricultor não é culpado de nada disso.;
Efeito dominó
A partir de 1991, as temperaturas altas ficaram ainda mais comuns, justamente quando muitas áreas invadidas foram regularizadas e transformadas em regiões administrativas. Riacho Fundo I e II, São Sebastião, Santa Maria, Recanto das Emas, Sobradinho II, Samambaia são algumas das localidades que cresceram nas últimas duas décadas. Criou-se, assim, um efeito dominó.
Mais áreas urbanas, menos espaços verdes. Mais vias de acesso aos novos endereços, menos vegetação nativa. Mais carros, mais poluição, mais calor. Aquela média histórica do DF, que ficava na casa dos 20,6;C, subiu para 21,05;C entre 1990 e 1999. Nos 10 anos seguintes, aumentou mais 0,35;C, chegando aos 21,4;C da média atual.
A cidade de clima aprazível vai perdendo essa característica aos poucos, influenciando nas médias das temperaturas mínimas. Entre os cinco dias mais frios da história, apenas um ocorreu na década de 1990, os demais, entre 1962 e 1978. Nos últimos 10 anos, o termômetro nunca ficou abaixo de 8,2;C, mínima essa registrada na noite de 18 de julho de 2000.
O fenômeno, segundo o meteorologista Assis Diniz, está diretamente ligado ao crescimento populacional. ;Uma grande quantidade de gases e poluentes se concentra na atmosfera e não permite a dispersão do calor à noite.; As menores temperaturas ocorrem nas madrugadas. De 2001 a 2009, foram 86 noites com mais de 20;C. A soma das ocorrências nas três primeiras décadas de Brasília não chega a esse número.
Chuvas
O calor não provoca só desconforto físico. Embora as pessoas o relacionem mais diretamente à secura, o clima quente propicia a formação de temporais, daqueles que alagam tesourinhas, fazem carros boiar na L2 Sul, formam verdadeiras corredeiras de água suja nas ruas de Ceilândia e Vicente Pires e esburacam as pistas que tomaram o lugar do cerrado nativo. Isso sem contar os raios e trovões. ;Temperatura alta favorece o desenvolvimento das chamadas nuvens cumulonimbus (3), explica Assis Diniz. Quanto maior o calor, maior a evaporação da água, que vai para a atmosfera, formando essas nuvens. Em determinado momento, as cumulonimbus ficam tão saturadas que ocorre a precipitação.
Se existe algum alento entre as estatísticas do meteorologista, esse diz respeito à década que está por vir. ;Não podemos dizer que a tendência é esquentar mais 1;C nos próximos 10 anos, porque a atmosfera não é linear. Seria uma grande coincidência que a proporção fosse idêntica à da década anterior;, comenta o especialista.
1 - Termômetros espalhados
O Instituto Nacional de Meteorologia está baseado no Setor Sudoeste. É lá que fica a principal estação de medição de clima do órgão. Para uma aferição mais próxima da realidade, há termômetros em pontos estratégicos do Distrito Federal: no Recanto das Emas, Planaltina, na estação ecológica de Águas Emendadas e na Base Aérea de Brasília.
2 - Somas e divisões
Existe um padrão mundial da Organização Internacional de Meteorologia, sediada em Genebra, na Suíça, para calcular a média climatológica de uma localidade. Ela consiste na soma da temperatura das 9h, com duas vezes a das 21h, mais a máxima e a mínima diária. Só se chega ao resultado final após dividir tudo por cinco. A média climatológica do DF ; de 20,6 ;C ; diz respeito às três primeiras décadas após a fundação (entre 1962 e 1991).
As cumulonimbus são verdadeiras montanhas de água suspensas. Às vezes, têm formato de cogumelo ou de um pé de couve-flor. São as nuvens mais comuns no DF. Sua base pode atingir até 1,5 mil quilômetros de diâmetro. Seu topo pode alcançar até 18km. Estima-se que o Airbus A330-200 da Air France tenha se chocado com uma delas e se perdido no Oceano Atlântico, quando fazia o trajeto entre o Rio de Janeiro e Paris, em junho de 2009.