Jornal Correio Braziliense

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Engenheiro foi um dos primeiros a chegar em Brasília, em 1956

Atahualpa Schmitz, hoje, vive no Rio de Janeiro e escreve memórias da construção: mais de mil páginas

Atahualpa é o nome do último imperador inca. Schmitz é um sobrenome de origem alemã; Prego traz a marca da ascendência paraense (e índia). Dessa mistura nasceu o engenheiro carioca Atahualpa Schmitz da Silva Prego, 84 anos, um dos primeiros a sujar as botas de lama sob o céu nebuloso do Planalto Central, num dia de outubro de 1956. Atahualpa é um bravo candango, ainda que não esteja mais em Brasília. Diz que a culpa por não morar na cidade que ajudou a construir é do Flamengo, de quem quer estar sempre perto. Vive no Rio de Janeiro, num casarão no Alto da Boa Vista, onde escreve suas memórias do tempo da construção de Brasília ; livro que já está com mais de mil páginas.

Dá para apostar que os escritos de Atahualpa vão compor uma obra mesclada por informações técnicas e crônicas de costumes. A memória do engenheiro está sendo reativada por um conjunto de diários de campo, nos quais ele registrava resumidamente os acontecimentos de ordem profissional. Os rabiscos são a fagulha que reacende a memória do engenheiro e o leva a transferir para o papel histórias de um período que, aos olhos de hoje, soa inacreditável.

Funcionário da Companhia Metropolitana de Construções, especializada em obras de terraplenagem e pavimentação, Atahualpa foi chamado à sede da empresa para ouvir uma proposta: ;Olha, temos aí um serviço muito grande que o governo nos oferece. É uma região inóspita, longe do Rio, e nós já oferecemos este trabalho para dois engenheiros antigos daqui da empresa Metropolitana, e eles não quiseram ir. Esse serviço te interessa? Temos de embarcar amanhã.; Eram meados de outubro de 1956, poucos dias depois da primeira visita que Juscelino Kubitschek fez ao local onde a cidade seria construída.

No dia seguinte, Atahualpa embarcou com a mulher, Nelly, para Goiânia, com a tarefa de abrir a pista do aeroporto da nova capital. Quem o recebeu foi o engenheiro Bernardo Sayão e quem lhe forneceu as plantas com as coordenadas geodésicas e topográficas foi Joffre Mozart Parada, também engenheiro. Na primeira visita de reconhecimento, feita de jipe, Atahualpa, Nely e o motorista se perderam no cerrado. ;Era tudo igual;, lembra.

Na chuva
Era preciso buscar o comboio de tratores, caminhões e equipamentos em Vianópolis, Goiás, onde terminava a estrada de ferro. Chovia bastante quando chegaram à pequena cidade. Como não havia onde se proteger do temporal, Atahualpa e seus ajudantes tiveram de suportar a chuva. Foi quando ele começou a descobrir os goianos: viu que alguns deles ficavam de cócoras e soube que aquela posição protegia parte do corpo. Ouviu então um deles comentar: ;Eu só saio daqui depois que a água correr pelo rego da bunda;.

Para construir o aeroporto, a Metropolitana montou um acampamento que mais tarde se transformou em um bairro do Núcleo Bandeirante. Foi Atahualpa quem abriu o clarão para que os primeiros barracos fossem erguidos. Ele conta que ajudou a escavar o cascalho para a construção do Catetinho e, nessa tarefa, descobriu que o solo de Brasília é laterizado ; ou seja, com grande quantidade de ferro e alumínio, bastante usado na construção de estradas.

Ainda era 1956 quando Atahualpa passou pelo seu primeiro grande teste. Juscelino pretendia pousar em Brasília naquela madrugada. Para que o pouso fosse possível na escuridão, o engenheiro providenciou bucha de balão, artefato feito com estopa suja de graxa, breu e sebo de carne que era usado para levantar o voo dos balões. Por volta das 2h, quando o avião presidencial roncou nos céus de Brasília, três jipes foram colocados no final da pista com os faróis acessos, as buchas incandesceram no restante do trecho e o presidente pôde descer no chão vermelho iluminado como um balão.

O engenheiro rubro-negro poderia ser o herói daquela aterrissagem, mas o que se seguiu foi coisa bem diferente do que era de se esperar. A pista de aterrissagem ainda não estava de todo pronta: havia uns 800 metros com terraplenagem já executada, uns 500 em execução e uns 500 apenas desmatados. Juscelino não gostou do que viu. E mandou chamar o homem de short, bota, camisa de borracha (;parecendo roupa de bispo;) e chapéu de chantungue. Atahualpa levou então uma ;espinafrada;, como ele diz, do presidente da República. Juscelino disse que a Metropolitana era uma empresa de incompetentes, que prometia, prometia e não cumpria os prazos, que a pista tinha de ficar pronta para que ele pudesse começar a usar os dois Viscounts recém-comprados da Inglaterra, que nem estava chovendo, que não entendia o atraso;

Quando finalmente pôde falar, o engenheiro respondeu: ;Senhor presidente, eu lhe informo que nós faremos a pista; e fez um gesto com a mão, como quem diz ;e eu vou dar no pé;. Ao que Juscelino deu uma gargalhada, no que todos os que estavam a seu lado o acompanharam. Em 2 de maio de 1957, dia da primeira missa, a pista estava pronta para receber o Viscount do presidente e os demais aviões que desceram em Brasília.

Lembranças
Atahualpa foi uma exceção ao levar bronca de Juscelino. Quem ocupava o cargo de ;espinafrador; da cidade em construção era o presidente da Novacap, Israel Pinheiro. ;Israel espinafrava todo mundo ; o dono da Rabello, o dono da CCBE,o dono da Caenge, o dono da Metropolitana;, até que a empresa na qual Atahualpa trabalhava decidiu abandonar as obras.

Depois de concluída a pavimentação de 2 mil metros da pista do aeroporto, houve grave desentendimento entre o dono da Metropolitana e Israel Pinheiro, e a empresa deixou Brasília, conta Atahualpa. Convidado para ficar por algum tempo, o engenheiro rubro-negro acabou sendo contratado pela Novacap, da qual foi presidente em curto período durante a segunda metade de 1962.

O engenheiro com nome de imperador também gostava de uma boa briga. Ele mesmo conta uma das muitas: convocado a prestar contas da compra indevida de uma garrafa de cachaça, a Paracatulina, em Vianópolis, Atahualpa resolveu espicaçar o diretor-financeiro da Metropolitana. Comprou uma nova garrafa da mesma marca, deixou só um pouquinho de pinga, fechou com uma rolha desgastada e mandou entregar para o departamento de finanças. Estava armada a confusão. Até que o dono da empresa, Haroldo Polland, chamou Atahualpa na sala e pediu a ele que voltasse logo para Brasília. ;O pessoal lá gosta muito de você;, contou.

Essas e muitas outras são histórias que o engenheiro Atahualpa Schmitz da Silva Prego conta sobre Brasília, quando vem aqui ou quando encontra, lá no Rio, alguém que queira ouvi-lo. Além da pista do aeroporto, pavimentou a Asa Sul, o Lago Norte, algumas estradas parque e trechos das rodovias BR-060 e BR-070. O engenheiro e dona Nely, 77 anos, têm dois filhos arquitetos ; José Cláudio e Lilian ; e quatro netos ; João Henrique, Carolina, José Cláudio Júnior e Guilherme.