Jornal Correio Braziliense

Cidades

Lucimar Rodrigues nasceu dois meses depois da inauguração de Brasília

Ela sempre foi a única brasiliense em sala de aula e o tempo todo teve de defender a sua cidade das críticas dos que aqui chegavam. Agora, sonha com uma grande festa de 50 anos

;Sua filha nasceu morta;, avisou a enfermeira do Hospital de Taguatinga à baiana Joselina dos Santos Lima, 18 anos, na manhã de 20 de junho de 1960, dois meses depois da inauguração de Brasília. ;Ela nasceu com muita febre, não conseguiu sobreviver;, insistiu a mulher. Joselina não aceitou o que ouvia: ;Quero ver a minha filha, traga ela aqui;. Tanto insistiu e esperneou que, pouco tempo depois, uma garotinha morena, gorduchinha e viva (viva) era colocada em seus braços. Joselina nunca entendeu o que havia acontecido, apenas soube que sua primeira filha, Lucimar, nascera com uma febre muito alta.

Até hoje, Joselina, 69 anos, atribui a febre da filha a um susto que ela, grávida de sete meses, levou no barraco de madeira na Vila Planalto. O marido, Irineu de Souza Lima, passava mais de três dias sem aparecer em casa, obedecendo ao ritmo de trabalho das vésperas da construção de Brasília. Num desses períodos, uma forte chuva de granizo destelhou o barraco da família. Sozinha e amedrontada, Joselina escondeu-se dentro do guarda-roupa. Quando cessou o temporal, havia uma grossa camada de pedras de gelo dentro do quarto. Joselina acredita que a filha, mesmo guardadinha, se assustou tanto quanto a mãe. Daí a febre ao nascer.

Quase 50 anos depois, Lucimar Santos de Lima Rodrigues não ficou com nenhuma sequela do susto. Guardou outras marcas. Uma delas, a mais importante, é o orgulho de ter nascido na capital do país, no ano da inauguração, e o fato de seu pai, pintor de parede, ter ajudado a construir a cidade moderna. A segunda marca foi a de ter precisado enfrentar, durante boa parte da vida, o preconceito que Brasília tinha com os ;candanguinhos;, os filhos dos candangos.

;Sempre me chamavam de candanguinha, mas essa expressão tinha um sentido pejorativo e eu respondia: ;Não sou candanga, sou brasiliense.;; Desde o primeiro ano de vida escolar, na Escola 10 de Taguatinga, ela era a única brasiliense em sala de aula. Os demais, em sua maioria, eram garotinhos e garotinhas nordestinas. Naquele tempo, a palavra ;candango; vinha acompanhada de um preconceito social. Candangos eram os operários da construção ; e os pioneiros mais instruídos não gostavam de ser qualificados como peões de obra.

Orgulho
No começo, Lucimar ficava com raiva de ser discriminada pelo que ela considerava motivo de orgulho, e reagia com seu desempenho escolar. ;Sempre fui boa aluna, me aproximava dos professores, lia muito.; Mais tarde, ouvia queixas dos colegas de faculdade (ela fez contabilidade). Reclamavam que Brasília era uma cidade que condenava os moradores à solidão, ao que Lucimar respondia: ;Vamos lá pra casa, lá está sempre cheio de gente;.

A candanguinha que nasceu com a cidade planejada teve uma infância plena de sentidos. Depois da terrível experiência na Vila Planalto, a família conseguiu comprar um lote em Taguatinga e mudou-se para uma casa na QSD 47. Lucimar tem três irmãs: Luciene, 48 anos; Marluce, 45; e Marleusa, 44. A infância das quatro candanguinhas teve muita brincadeira na terra vermelha. Cada uma era dona de uma árvore do quintal, num tempo em que Brasília ainda estava vazia de arborização pública. Das lembranças do Plano Piloto, a mais viva foi a de quando visitou o Parque Yolanda Costa e Silva, o atual Nicolândia. Ficou extasiada com os brinquedos e voltou para casa feliz como nunca, mesmo tendo queimado a coxa no tobogã.

Naqueles tempos, os vizinhos se reuniam para contar suas experiências nas cidades de origem, organizavam grandes festas juninas e eram compadres e comadres de fogueira. ;Eu adorava ouvir aquelas histórias todas;, lembra-se Lucimar. Apesar de ter estudado até a 5; série, o pai gostava de ler e transmitia esse gosto às filhas. A mais velha gosta de contar sua maior estripulia no campo das leituras proibidas: o pai a flagrou lendo, sem autorização, Gisele, a espiã nua que abalou Paris. Tomou o livro da filha e deu-lhe uma bronca. Até hoje, Lucimar lamenta não ter concluído a leitura.

Aos 18 anos, arranjou o primeiro emprego na Eletronorte. As cenas da escola voltaram a se repetir e a jovem candanga passou a defender a cidade das críticas dos recém-chegados. Era o de sempre: que a cidade era impessoal, que o melhor serviço médico era o aeroporto, que aqui não havia esquinas. ;Aquilo me irritava muito e eu reagia: ;Vocês vêm de fora, com um emprego desses, e ficam falando mal da cidade que lhes deu oportunidade? Brasília é acolhedora, recebe todo mundo, gente boa e gente má.;;

Comemoração
Até hoje, Lucimar está sempre pronta para defender a cidade onde nasceu, o que só não lhe rendeu inimigos por conta de seu temperamento cordial e caloroso. ;Não sou de afrontar ninguém, todo muito tem o direito de pensar o que quiser.; Lamenta que a cidade tenha crescido tanto, que esteja tão violenta e que tenha sido ocupada por ;sanguessugas; que querem usurpar as oportunidades que Brasília oferece aos brasileiros.

Faltando menos de 100 dias para os 50 anos de Brasília e pouco mais de 160 para os seus, Lucimar planeja a sua grande festa. Diz, brincando, que tem um cofre de porquinho na sala para as economias que vão garantir a celebração. Há dois anos, faz curso de canto porque quer cantar no baile. Imagina-se descendo de uma escada e sendo recebida por 50 amigas, metade delas usando um vestido acinturado e rodado de poá, com fundo branco; e outra metade, do mesmo modelo e estampa, mas com fundo preto. Começará, então, uma coreografia ao estilo anos 60. Quando conta seus sonhos, na varanda do apartamento no Sudoeste, de frente para o Parque da Cidade, o rosto de Lucimar ganha brilho de adolescente.

No instante seguinte, ela parece tímida. Avisa que se deixará levar pela vaidade e revela um outro sonho: o de participar dos festejos pelos 50 anos de Brasília. Lucimar tem vontade de declamar um poema para a sua cidade, quem sabe um dos seus. A candanga escreve o que ela chama de prosa-poética. Alguns desses pequenos textos foram publicados na coleção Livro na rua, da Editora Thesaurus.

O candango-pai morreu cedo, em 1994, aos 59 anos. Um de seus maiores orgulhos era o de suas quatro filhas brasilienses terem feito faculdade e passado em concurso público. ;Ele adorava Juscelino, amava Brasília e era muito grato à cidade por ela ter dado oportunidades às suas filhas.; A candanga-mãe mora sozinha num apartamento da Área Econômica do Sudoeste. Funcionária do Tribunal Superior do Trabalho, Lucimar é casada com Aderbal, 53 anos, um candango que chegou aqui aos 3 anos, e com quem tem dois filhos (Mariana, 21, e Paulo César, de 20). Num de seus textos de prosa-poética, Lucimar escreveu: ;Um sonho se tornou realidade, sou parte desse sonho.;

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