É fim de tarde no Setor Coimbra, em Águas Lindas (GO), município distante 44km do Plano Piloto. Alguns jovens jogam futebol em um campo de terra batida, na Praça da Esperança. Ao lado do campinho, garotos mais velhos exercem outra atividade. Estão sentados em bancos, atentos a tudo. Vasculham as esquinas com o olhar arregalado e se incomodam com estranhos. O grupo está à espera de clientes, os viciados em crack da vizinhança. Mesmo sem pedras escondidas nos bolsos ou na praça, fecham as negociações. A entrega é feita de bicicleta por aviõezinhos, a postos no outro lado da rua.
O tráfico do tipo formiguinha existe em cerca de um quarto dos 170 bairros de Águas Lindas. Também se espalhou pela maioria das áreas rurais e urbanas do Entorno do Distrito Federal, região hoje capaz de produzir, receber e distribuir a droga que virou epidemia no Brasil. O Correio percorreu por três dias os principais pontos de venda e consumo de crack ao redor da capital do país. Descobriu que em pelo menos cinco cidades o problema avança a ponto de tomar o lugar da merla(1), reinante no Entorno até 2006. São hoje milhares de viciados, sem assistência médica por parte do Estado.
Autoridades policiais de Valparaíso, Luziânia, Águas Lindas, Santo Antônio do Descoberto e Formosa estão em alerta. Buscam alternativas no combate ao problema, apesar das deficiências estruturais e da falta de recursos para a região. ;Hoje não tem mais merla no Entorno. Isso acabou. O crack, substância muito mais destrutiva e viciante, tomou conta. Na esteira dela, aumentam os casos de furtos e roubos;, disse o delegado Marcelo Mauad, responsável pelo Centro Integrado de Operações de Segurança (Ciops) do Jardim Céu Azul, um dos bairros de Valparaíso.
A equipe chefiada por Mauad ainda não estourou laboratórios de crack na região, mas o delegado acredita que eles existam. A primeira apreensão(1) no lugar ocorreu há cerca de um ano e meio. Um dos principais pontos de distribuição fica no Setor Parque São Bernardo, mais conhecido como Posto 7 (veja arte). A região de motéis, próxima à rodovia, facilita a distribuição das pedras. A exemplo das localidades visitadas pela reportagem, o uso por ali raramente ocorre nas ruas. Uma praça inaugurada há menos de 20 dias está com vários postes de iluminação quebrados. O lugar, porém, serve como ponto de entrega.
O consumo das pedras no Entorno, ao contrário do Distrito Federal, não ocorre em cracolândias. É difícil a cena de um viciado com cachimbos feitos com latas de refrigerante ou cerveja nas áreas urbanas dos municípios goianos. O usuário sabe que policiais civis e militares que o pegarem em flagrante só irão soltá-lo depois de entregarem o nome do traficante ou do aviãozinho. ;Se a gente pega alguém em flagrante, consumindo crack na nossa cara, roda com ele até falar um nome ou mostrar onde comprou. É assim por aqui;, afirmou um policial militar de Luziânia.
Existem pelo menos quatro pontos de tráfico na localidade distante 66km de Brasília. Todos em bairros mais afastados, como Setor Serrinha e Vila São José. Um deles leva o nome de Setor Fumal, no Morro da Farinha. Por ali, uma praça recém-inaugurada surge como local de distribuição à noite. A área fica livre da movimentação até as 16h, quando o responsável pela manutenção conclui o expediente diário. É preciso apenas que se aproxime o fim da tarde para que jovens vestidos com bermudões e camisetas largas tomem conta do lugar para venda de entorpecentes e atos de vandalismo.
Policiais civis de Luziânia estouraram um laboratório de crack no ano passado. ;A produção ocorre na área rural e os traficantes encaminham a droga para o DF e para o consumo interno. Aqui, para quem está envolvido com crack, tudo vira pedra. Teve um caso em que um homem roubou um saco de pequi para trocar pela pedra;, contou um dos investigadores do Ciops de Luziânia. A estrutura policial está em fase de mudança por causa da epidemia. Equipe de 10 policiais do Ciops ficará por conta de uma unidade do Grupo Especial de Repressão a Narcóticos (Genarc) a partir de março deste ano.
Guerra
Uma das cidades mais carentes de infraestrutura no Entorno do DF também tem o cenário mais preocupante na questão da droga. Investigadores de Águas Lindas catalogaram 40 bairros marcados pela movimentação do tráfico, idêntica à narrada no primeiro parágrafo. ;Cada traficante comanda cerca de 30 equipes de jovens aviõezinhos. Chegaram ao ponto de comprar cocaína só para produzir as pedras e distribuí-las na região;, revelou um dos policiais do Ciops, especializado no combate ao crime. Alguns jovens traficam para manter o vício. ;Vendem 15 e consomem cinco (pedras);, acrescentou.
O lucro fez com que as disputas pelas bocas de fumo acabassem em sangue. Antes especializados em maconha, cocaína e merla, agora os traficantes locais só querem vender o crack. Apesar de barato ; cada pedra custa de R$ 5 a R$ 10 ;, o consumo se revela frenético. ;Há alguns anos, cada um se especializava em um entorpecente e o outro não se metia. A coisa agora virou guerra mesmo, pois todos estão impressionados com a quantidade de dinheiro que entra;, afirmou o mesmo agente, que preferiu não se identificar. Mortes em conflitos entre grupos rivais se tornaram, assim, comuns.
O poder do tráfico local faz com que a polícia se concentre na atividade das bocas. O Ciops de Águas Lindas é um dos poucos com seção exclusiva para repressão às drogas, o que permite planejamento nas ações. Muitas delas são organizadas a partir de denúncias anônimas ; média de quatro por dia. A última operação ocorreu na véspera de Natal e terminou com 100 pedras apreendidas. Há oito meses, os policiais estouraram a boca de fumo um traficante do Setor Jardim Barragem. A casa chamou a atenção por um detalhe: era vigiada por câmeras de vídeo camufladas por luminárias externas.
Em Formosa, o problema assola as áreas urbana e rural. O consumo ocorre com mais frequência nos bairros São Benedito, Pantanal, Parque Lago, São Vicente e Formosinha. Nos arredores do município, pode ser visto nos assentamentos de Flores de Goiás e Palmeiras 1, 2 e 3. Assim como em Luziânia, a Polícia Civil local contará com a atuação de uma unidade do Genarc para conter o avanço do tráfico e o uso das pedras. Dois policiais estão lotados no departamento especial desde o início do ano, mas a equipe deve ser reforçada.
1- Origem local
A criação da substância ilícita ocorreu em Ceilândia no fim dos anos 1980. Também é produzida a partir da pasta-base de cocaína. Mas chega aos usuários em forma de pasta, consumida com cigarros de maconha.
2- Crescimento
A primeira apreensão de crack no DF ocorreu em 2006, quando a Polícia Civil recolheu pouco mais de 2g da droga. Em 2007, a quantidade apreendida cresceu para 0,5kg. A partir de então, a circulação das pedras tomou conta da capital do país. Entre 2007 e 2009, cresceu mais de 800%.