Cansados de presenciar o consumo de drogas na praça da Quadra 205 de Águas Claras, os moradores dos condomínios próximos tomaram uma atitude drástica. Em vez de promover um ambiente que pudesse ser aproveitado pela vizinhança, a comunidade optou pela destruição(1) da praça. ;Demoli-la foi como tentar resolver um adultério tirando o sofá da sala;, compara o sociólogo Vicente Faleiros. Além de não solucionar o problema, a decisão revela intolerância(2) e dificuldade para lidar com áreas de uso comum, um problema recorrente em Brasília ; consequência, entre outras coisas, da falta de convivência comunitária e da omissão do Estado.
Recém-chegado de uma viagem de férias, o analista de sistemas Alexandre Bogado, 45, ficou surpreso ao se deparar com os restos da Praça Jandaia. ;Durante a construção dos condomínios, tinha gente que defendia a existência de um estacionamento no lugar da praça. Mas todo mundo achou bonito quando ela foi construída;, lembra o morador de Águas Claras, que lamenta ter de passear com a mulher e o filho Gabriel entre os escombros do coreto e da fonte, e reclama por não ter sido consultado sobre o assunto. ;Não devemos combater a praça, mas quem a utiliza de forma errada;, resume o analista.
Quando não é demolido, o espaço público de Brasília acaba privatizado, como ocorreu com o pátio de alguns blocos do Plano Piloto ; cercados, para controlar o circulação de pessoas ; e os parques infantis do Sudoeste, construídos em área pública, mas de utilização restrita. Síndica de um bloco da Quadra 300 do setor, Fernanda Torres garante que o uso do parquinho construído pelos moradores é livre e diz que os funcionários do prédio são instruídos a deixar todo mundo entrar. ;O parque só é fechado com cadeado à noite, para impedir a entrada de animais;, explica Fernanda.
Fora, estudantes
O caso da extinta Praça Jandaia remete à negativa dos moradores do Sudoeste quanto à construção de escolas públicas. Eles não queriam barulho nem aumento na movimentação de moradores da Octogonal e do Cruzeiro pelas quadras ; e houve quem se mobilizasse para alterar a destinação das áreas reservadas por lei aos centros de ensino (leia Memória).
À época, os moradores de um bloco do Sudoeste chegaram a demolir uma quadra poliesportiva que passara a ser utilizada por gente que não morava no prédio. ;Numa comunidade como a de São Luiz de Paraitinga (SP, que foi castigada pela chuva do início do ano), o povo todo está colaborando, porque há laços que foram criados ao longo da história e porque a cidade é um projeto coletivo construído em séculos;, compara Faleiros, professor da Universidade Católica de Brasília (UCB).
O sociólogo lembra que o Distrito Federal ainda está em formação e possui áreas mais jovens que a Região Administrativa de Brasília, como Águas Claras. Faltam, portanto, elos que justifiquem espaços públicos de convivência. A pouca idade da capital não é justificativa, contudo, para a inexistência de interação entre os vizinhos, principalmente no que se refere à resolução conjunta de problemas.
Coordenadora de um projeto que busca recuperar a memória social da capital, a socióloga Maria Salete Kern Machado lembra que a intenção original era criar Brasília ;com uma perspectiva de cidade diferente, onde houvesse mais integração;. ;Mas a segregação e a pobreza são problemas em todo lugar;, completa.
De acordo com Maria Salete, apesar de Brasília não ter conseguido fugir à regra, a forma como algumas de suas quadras residenciais foram construídas permite maior integração do que se observa pelas grandes cidades do país. Para ir do Eixão à W3, por exemplo, é preciso atravessar uma superquadra. Nessas quadras, há escolas e parquinhos ; espaços públicos de convívio.
Insegurança
Embora guarde peculiaridades, essa intolerância do brasiliense também é resultado do aumento do individualismo e do sentimento de insegurança, fenômenos mundiais. ;A questão privada assumiu uma proporção muito grande. No Rio de Janeiro, o espaço de convívio é a praia. Mas, mesmo lá, não há mais aquela convivência de antigamente;, explica a socióloga. ;Brasília era uma cidade onde todo mundo convivia nos clubes. Isso ainda existe, mas a gente percebe um aumento no número de pessoas que levam a diversão para o espaço privado. É só ver a quantidade de piscinas nas casas da cidade;, conclui.
1 - Demolição
O coreto e a fonte da Praça Jandaia foram demolidos há 10 dias para dar lugar a gramados e árvores. Os bancos de concreto espalhados ao redor da praça serão fixados ao chão. A praça ; inaugurada em dezembro de 2007 ; foi uma reivindicação dos habitantes locais.
Projetadas pelos moradores, as obras ficaram por conta da empresa responsável pela construção dos sete condomínios que rodeiam a praça.
2 - Mortes
Num dos casos mais graves de intolerância na Asa Sul, o analista do Banco Central José Cândido do Amaral Filho executou a tiros, em janeiro do ano passado, dois mendigos que trocavam carícias na Praça do Índio (703/704 Sul) na noite anterior ao crime. Doze anos antes, em abril de 1997, o índio Galdino Jesus dos Santos, do povo Pataxó Hã-Hã-Hãe, morreu na mesma praça depois de ter o corpo queimado por cinco jovens de classe média.
Contrários às escolas
Em abril de 2000, os líderes comunitários do Sudoeste se mobilizaram para solicitar a construção de praças e quadras esportivas em áreas destinadas por lei a escolas públicas. Os moradores argumentavam que não havia demanda na região para a implantação de colégio do governo, já que seu poder aquisitivo permitia o pagamento de instituições particulares. Segundo eles, as escolas que porventura fossem construídas no setor contemplariam apenas os moradores de regiões próximas, como Cruzeiro e Octogonal.
Atualmente, cada uma das 14 quadras residenciais do Sudoeste ainda mantém duas áreas reservadas para a construção de centros de ensino públicos ; uma delas fica bem no centro da SQSW 504 (foto). De acordo com a administração regional do setor, os 28 pontos permanecem gramados e à disposição da Secretaria de Educação. A secretária de Educação em exercício, Eunice Santos, diz que não há planos para erguer qualquer escola na região e que o governo estuda, inclusive, trocar seus terrenos no setor pela construção de escolas em outros lugares.
Omissão do Estado
O brasiliense tem sua parcela de culpa ao apropriar-se de espaços públicos da cidade, mas, segundo pesquisadores, é do Estado a responsabilidade na mediação e na indução da ação popular nas áreas coletivas. Ao longo das últimas décadas, as autoridades que passaram pelo Governo do Distrito Federal não foram capazes de envolver a população no trato com a administração pública. ;Numa cidade cuja população não tem compromisso com o bem público, a tendência é que os espaços comunitários se deteriorem ou sejam demolidos;, alerta o professor José Matias-Pereira, especialista em administração pública, que considera a demolição da praça em Águas Claras uma involução, ;todo um esforço reduzido a pó;.
Professor da Universidade de Brasília (UnB), Matias-Pereira lembra que nenhum governante pode resolver sozinho todos os problemas que a sociedade lhe apresenta. Incentivar o comprometimento da comunidade é, portanto, essencial. ;Só que o Estado emprega seu dinheiro para fornecer serviços, e não investe em vida comunitária. Assim, a comunidade não se envolve;, critica o sociólogo Vicente Faleiros, que lembra do orçamento participativo do governo Cristovam Buarque (1995-1999) como uma das únicas iniciativas nesse sentido.
Pouco envolvimento
Mas o orçamento participativo ficou na história do DF como uma experiência frustrada, principalmente porque não teve continuidade nem foi acompanhado por mecanismos que convencessem a população da importância de participar, de fato. ;Se o orçamento não vier com o fortalecimento da comunidade, qualquer governante vai colocá-la no bolso, fazendo com que ela assine embaixo orçamentos horrorosos e que provavelmente nem serão cumpridos;, alerta o urbanista Frederico Flósculo, também professor da UnB.
Para Matias-Pereira, o orçamento é a síntese das políticas públicas que o governo vai implementar. ;Se a população começar a compreender como o orçamento é importante, vai haver uma mudança cultural;, garante. O problema é que esse procedimento de envolver os cidadãos na administração pública é caro, trabalhoso e demorado.
E eu com isso
A melhor forma de combater a violência não é só mudá-la de lugar, analisam os especialistas. A privatização de um espaço público pode manter a segurança dentro de um ambiente gradeado, mas a violência existirá do lado de fora.
A sensação de segurança vinda da extinção de uma área de uso comum, como praças e parques, é ilusória. O ideal é combater o consumo de drogas e os assaltos, por exemplo, com civismo e vigilância.